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Subjetividade: narciso melancólico e narciso histérico

O homem moderno é melancólico ou histérico? Ambos qualificativos já foram usados para descrever condições patológicas, viraram qualificativos de gente normal!

Subjetividade: narciso melancólico e narciso histérico

O homem moderno é melancólico ou histérico? Ambos qualificativos já foram usados para descrever condições patológicas. Hoje, estão mais distantes dos consultórios. Sumiram? Há filósofos que dizem que estes termos desapareceram das salas de terapia à medida que se tornaram nomes para condições que se universalizaram. Viraram qualificativos de gente normal! Todos nós poderíamos ser chamados de uma coisa ou outra.

Os teóricos da Escola de Frankfurt referem-se ao homem moderno como melancólico. O filósofo Peter Sloterdijk o vê como histérico. Se recorremos às definições de Freud, tomando-as de forma genérica e sem muito rigor, podemos dizer que o melancólico é sombrio e ensimesmado, enquanto que o histérico faz escândalos e adora chamar a atenção para si através de comportamento teatral. Podemos confundir, ambos, com o narcisista. Mas, aí, todo cuidado é pouco. A distinção é visível.

Os frankfurtianos defendem a ideia de que a melancolia adveio da passagem do homem da condição de alguém com instintos livres para aquele que teve de conter e regrar impulsos. A melancolia vem da perda – sem luto – que teria havido para que o homem viesse a ser um transeunte racional. Peter Sloterdijk adota a tese de que o homem, no traçado de ser indivíduo, desenvolveu-se como aquele que se autoproduz (antropotécnicas) e, nesse afã, teatraliza-se. Os frankfurtianos olham para o homem moderno como aquele que calcula, mas não sente, por isso é um telespectador. Na verdade, nesse diapasão, o homem é propício a uma vida na “sociedade do espetáculo” (Debord).

Sloterdijk diz que o homem é o próprio espetáculo, e sua autoteatralização se encaixa muito bem na sociedade atual, completamente dominada pela mídia. É como se o homem de Adorno e Horkheimer (e Benjamin) estivesse sempre num canto, tendo sido treinado pela passividade estética diante da mercadoria pode adotar com facilidade uma atitude igual diante da proliferação de imagens da TV. É como se o homem de Sloterdijk, por sua vez, estivesse sempre se autorreinventando como quem tem diversas personalidades, todas avatares de jogos de Internet em dispositivos móveis.

Aqui, a tese do homem como corpo nu, de Agamben, ajuda um pouco: a coisa mais fácil é fazer alguém que é só corpo, portanto sem ética, dispor-se em avatares.

Em ambos os casos, há um certo autocentramento, que nos lembraria a tese do marxista Anselm Jappe (na trilha de Lasch), que diz que somos todos narcisos, uma vez que, acostumados à igualação das mercadorias por dinheiro,  entramos para um mundo tautológico. No mundo em que reina o equivalente universal, também nós teríamos abdicado de insistir em divergências fecundas, agindo sempre na igualação. O autocentramento do narcisista nada seria senão o preenchimento do horizonte por nós mesmos, dado nossa existência num mundo sem barreiras. Vacas se igualam a tomates pelo dinheiro. O mundo se tautologiza. E cada dinheiro se veste de dólar para atravessar fronteira e ficar igual ao outro. Nada há além do eu que não seja o eu. É o império da mesmidade.

Essa tese da mesmidade pode ser endossa pelo filósofo germano-coreano Byung Chul Han. Ele diz que vivemos a “sociedade do cansaço” porque nossa tarefa é a da autoexploração. No regime neoliberal somos todos pseudo-empresários de nós mesmos, pondo-nos em esforço máximo. A diversidade impera, mas não a singularidade. Existem os outros, mas nada que nos faça parar e pensar, pois não existe o antagônico, ou seja, o Outro. Há tribos urbanas de todo tipo e, para ficarmos com Lipovetsky, dizemos que o consumo é intimista, voltado para uma situação narcísica. As propagandas de creme Natura que o digam! Mas esse cultivo de si não tem dialética, não tem confronto. Os índios possuem vários outros índios, de outras tribos – são os outros. Mas eles ainda não viram o branco, portanto não conhecem o Outro. A inexistência do antagônico traz a solidão em meio aos muitos. A solidão de narciso.

O narciso em cada um não seria, também, em alguns momentos decisivos, ou o melancólico ensimesmado ou o histórico teatral?

Não vejo incompatibilidade, ao menos em termos bastante gerais, entre tomar o narcisismo como modelo do homem moderno e, ao mesmo tempo, notar que também somos melancólicos e histéricos.

No caso dos frankfurtianos e de Sloterdijk, há em suas argumentações um ponto comum que não é mera coincidência: todos eles analisam a história de Ulisses e as sereias para exemplificar os modelos adotados. Ambos traçam a pré-história (fantástica) da subjetividade por meio do episódio das Sereias, quando Ulisses volta da Guerra de Tróia para sua casa em Ítaca. Trata-se de uma das mais citadas passagens da Ilíada, de Homero.

Para os frankfurtianos, Ulissses enganou as Sereias ao se amarrar ao mastro e, então, contendo os impulsos, conseguiu ouvi-las cantar sem bater no penhasco com o se navio. Mas, ao fazer assim, ao traçar estratagemas, já se mostrou racional, um indivíduo burguês moderno, incapaz de realmente sentir e entrar em êxtase. Já era o homem a cumprir tudo formalmente, como de fato ocorre no mundo capitalista da mercadoria, onde as trocas são formais: a vaca pelo tomate por meio do dinheiro. Todavia, Benjamin notou o poema de Kafka, em que Ulisses não escuta as Sereias, e então finge que as escuta, criando um teatro para todos os seus companheiros de navio, que seguem remando com os ouvidos tampados. Isso pode nos conduzir à interpretação de Sloterdijk.

Ora, se é assim, se invocamos Kafka para notarmos o poema homérico, temos aí um prato cheio antes para Sloterdijk que para os próprios frankfurtianos.

Ulisses viu que não existiam Sereias, e que o canto vinha dele mesmo, da sua garganta. Nada mais nada menos que o som do canto de sua mãe, aquele canto do tempo em que esteve resguardado no útero. Qualquer volta para a casa seria acalentada por esse canto. Desse modo, a teatralização de Ulisses no mastro, seus olhos esbugalhados e seus gritos, tudo isso seria nada além do chamamento de atenção para si, próprio do homem moderno. É seu selo e diagnóstico: histérico.

Narcisista, sim – eis aí o homem moderno. Mas com nuances de melancolia e com espalhafatosidade histérica. Não encontramos esses três tipos predominando em nossa cultura atual? Não são essas as características centrais dos homens e mulheres modernos quando os vemos em sua normalidade? É difícil hoje nos afastarmos dessas teses.

Paulo Ghiraldelli Jr., 62, filósofo
http://ghiraldelli.pro.br/

Confira outros artigos na minha coluna: Uma mãozinha filosófica

 

Paulo Ghiraldelli Jr é filósofo, professor e escritor. Tem doutorado em filosofia pela USP e doutorado em filosofia da educação pela PUC-SP. Tem mestrado em filosofia pela USP e mestrado em filosofia e história da educação pela PUC-SP. Tirou sua livre-docência pela UNESP, tornando-se professor titular. Fez pós-doutorado no setor de medicina social da UERJ, como tema “Corpo – Filosofia e Educação”. É bacharel em filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (S. Paulo) e é licenciado em Educação Física pela Escola Superior de Ed. Física de S. Carlos, hoje incorporada pela Universidade Federal de S. Carlos (UFSCar). Foi pesquisador nos Estados Unidos e na Nova Zelândia. É editor internacional e participante de publicações relevantes no Brasil e no exterior. Possui mais de 40 livros em filosofia e educação. Trabalhou junto da produtora de TV e filósofa Francielle Maria Chies no programa Hora da Coruja da FLIX TV. É professor de filosofia aposentado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Trabalha atualmente como diretor e pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA).
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