
Soft Power: A Guerra Civilizacional e a Batalha pelo Imaginário Global
“O verdadeiro domínio não é impor pela força, mas fazer com que o outro deseje o que você quer que ele deseje.” Antonio Gramsci (adaptado)
Não são mais tanques que atravessam fronteiras. Hoje, as armas mais eficazes são invisíveis: algoritmos, padrões de consumo, doutrinas identitárias, pacotes culturais, sistemas de valores.
Estamos vivendo uma guerra civilizacional na qual o poder se exerce não apenas por coerção (Hard Power), mas principalmente pela modelagem de crenças, desejos e identidades — o chamado Soft Power.
Essa guerra não se trava apenas entre nações, mas entre visões de mundo: tecnocracia x tradição, globalismo x identidades locais, utopias digitalizadas x heranças espirituais.
O palco não é apenas o Ocidente em crise, mas um planeta em reconfiguração.
O termo Soft Power foi criado por Joseph Nye, em 1990, para descrever a capacidade de influência por meio da persuasão cultural e simbólica, e não da força. Num mundo moldado pelas mídias, que controlam a narrativa e controlam o comportamento.
Hoje, esse poder é exercido não só por Estados, mas por plataformas digitais, organismos multilaterais, fundações bilionárias e movimentos ideológicos globalizados.[1]
Ele se manifesta por meio da educação, entretenimento, moda, linguagem, comportamento e campanhas sociais – são os algoritmos que selecionam o que deve ser visto, dito ou sentido. O soft power tornou-se a nova moeda de dominação — e sua lógica é silenciosa, mas implacável.
O momento atual é marcado por dois vetores simultâneos e aparentemente contraditórios:
1. Tecnopoder globalizado – Grandes corporações tecnológicas, inteligências artificiais, ciberespionagem e censura algorítmica formam um novo ecossistema de controle e vigilância. O caso da China, com seu sistema de “Crédito Social” e censura digital, é apenas a ponta do iceberg. No Ocidente, a censura é mais sutil: invisibilização, cancelamento, desmonetização, reprogramação de linguagem.
2. Ascensão das teocracias e etnocivilizações – Irã, Índia, China e até setores da Rússia e do mundo árabe reagem ao globalismo com um retorno às suas bases teológicas, culturais e civilizacionais. Em vez de aceitar o modelo liberal-Ocidental como inevitável, essas civilizações reforçam suas mitologias fundadoras. Trata-se de uma guerra narrativa e espiritual, não apenas geopolítica.
Nesse contexto, a crise do Ocidente não é apenas econômica ou política: é ontológica. O Ocidente, herdeiro do Iluminismo, perdeu a fé em si mesmo.
O chamado “movimento woke” é apenas uma expressão específica da lógica do soft power — um desdobramento cultural de um processo mais amplo de reengenharia social. Seu foco em identidades fragmentadas, linguagem politicamente correta e justiça simbólica ecoa o desejo de reconfigurar os fundamentos antropológicos do Ocidente.
Porém, reduzir o soft power ao wokismo seria um erro. Há outras frentes tão ou mais relevantes hoje:
- A substituição da educação por doutrinação emocional;
- O culto à diversidade como forma de homogeneização global;
- A exaltação do presente eterno (pós-histórico) como negação do legado civilizacional.
Muito se fala sobre o surgimento de um “Iluminismo Negro” — termo carregado de ambiguidade. De um lado, ele expressa a emergência de vozes antes marginalizadas. De outro, representa uma recodificação da racionalidade Ocidental, que abandona os valores universais em nome de uma justiça de tribos.
A combinação de neorreligiosidade com os algoritmos somados ao ressentimento coletivo forma uma nova ortodoxia: emocional, fluida, persecutória e paradoxalmente intolerante.
Em nome da liberdade, criminaliza-se a dissidência. Em nome da diversidade, reprime-se a complexidade. E em nome da empatia, vigia-se o outro.
A consequência visível desse processo é uma civilização em desintegração simbólica:
- Jovens sem referências estáveis de identidade e pertencimento;
- Espiritualidades diluídas em autoajuda digital;
- Democracias capturadas por tecnocracias globais;
- Cultura transformada em propaganda emocional.
Enquanto isso, civilizações concorrentes — islâmica, chinesa, hindu — fortalecem seus fundamentos. Não por saudosismo, mas por estratégia.
O futuro será definido não apenas pela tecnologia, mas por qual sistema simbólico conseguirá manter coesão, significado e direção.
Estamos diante de um ponto de inflexão. O Ocidente precisa escolher entre:
- Continuar embarcando em narrativas que atomizam o indivíduo e dissolvem os vínculos culturais;
- Ou reencontrar sua força simbólica, filosófica e espiritual — não para excluir o outro, mas para reafirmar sua própria substância.
O Soft Power é inevitável. Mas ele pode ser reorientado. A guerra que vivemos não é contra um inimigo externo, mas contra a própria renúncia ao que nos moldou.
Ainda há tempo para resistir à homogeneização cultural travestida de progresso. Isso não significa negar as lutas legítimas por justiça, mas rejeitar os usos distorcidos que transformam tais causas em ferramentas de fragmentação.
Reencontrar a solidez da cultura Ocidental — sem saudosismo, mas com senso de continuidade — é o desafio dos próximos anos. E essa recuperação exige coragem intelectual, lucidez crítica e, sobretudo, autonomia das narrativas.
Porque o mundo será, inevitavelmente, moldado pelas histórias que escolhemos contar e valores pelos quais lutaremos — e tudo aquilo que aceitamos sem questionar.
Mas, isto já assunto para a próxima coluna. Até lá!
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Quer saber mais sobre como o Soft Power influencia identidades e redefine culturas no mundo contemporâneo? Então entre em contato comigo. Terei o maior prazer em responder.
Sandra Moraes
https://www.linkedin.com/in/sandra-balbino-moraes
Confira também: Dividir, Dominar e Vencer: Como a Fragmentação Cultural Ameaça Valores e Identidades
[1] Nye, Joseph. Bound to Lead: The Changing Nature of American Power. Basic Books, 1990. Schwab, Klaus. The Fourth Industrial Revolution. World Economic Forum, 2016. Appiah, Kwame Anthony. The Lies That Bind: Rethinking Identity. Norton, 2018. Harari, Yuval Noah. Homo Deus: Uma breve história do amanhã. Companhia das Letras, 2016. CDC (Centers for Disease Control and Prevention). Youth Risk Behavior Survey, 2023. Banco Mundial. World Development Indicators, 2024. Escobar, Arturo. Designs for the Pluriverse: Radical Interdependence, Autonomy, and the Making of Worlds. Duke University Press, 2018.
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