
O Etarismo no Mercado de Trabalho: A Nova Balada de Narayama
No clássico “A Balada de Narayama”, do cineasta japonês Shōhei Imamura, a velhice é punida com o abandono. Quando os moradores de uma aldeia chegam aos 70 anos, são levados ao topo da montanha Narayama para morrer, já que a aldeia em que vivem enfrenta uma crise causada por falta de alimentos.
No filme, esse é o destino reservado a todos os que chegam àquela idade, não importando seu estado de saúde. O ritual precisa ser cumprido e um parente, geralmente um filho ou neto, leva a pessoa até o alto da montanha, onde ela será deixada para morrer, longe dos olhos da aldeia, que continua sua vida normalmente.
O episódio “O Dia do Arremesso” da série “Família Dinossauro”, é uma paródia de “A Balada de Narayama”, quando dinossauros idosos devem ser atirados em um poço de piche ao completarem 72 anos. Com humor, a série denuncia e questiona o absurdo de uma sociedade que decide se livrar de quem envelhece.
O simbólico dessa história revela o incômodo que a velhice representa para sociedades que valorizam apenas a força produtiva. E aí, vem a questão: será que estamos longe dessa realidade, ainda que em graus diferentes?
Mudaram os cenários e as justificativas, mas a lógica permanece.
Hoje, o descarte ocorre nos escritórios, nas seleções de emprego, nas reuniões de liderança. O mundo corporativo está promovendo sua própria versão dessa subida da montanha: a exclusão sistemática de profissionais 50+.
Por aqui, não tem montanha, claro. Mas esse processo de exclusão segue ativo, onde esses profissionais, com bagagens enormes de conhecimento, são rotulados como ultrapassados e descartados por empresas que ainda operam com a ideia de que inovar é sinônimo de juventude. É a atualização da mesma lógica cruel de Narayama: você já viveu o suficiente, agora só vai atrapalhar. Então, é melhor sair do nosso campo de visão.
E da forma que o mundo caminha, isso pode se tornar um problema ainda maior.
Ao mesmo tempo em que organizações descartam a experiência, o mundo investe bilhões na busca por mais tempo de vida. Grandes nomes do Vale do Silício — como Jeff Bezos, Larry Page e outros bilionários da tecnologia — estão financiando pesquisas que prometem estender a longevidade humana para 120 anos ou mais. A ciência da longevidade está em alta, mas longevidade para quem? E, mais importante: com que propósito?
Porque, se a expectativa de vida se ampliar de fato — mesmo que de forma desigual, como tudo mais — a sociedade terá de lidar com uma nova realidade: milhões de pessoas com 80, 90, talvez 100 anos, ainda lúcidas, ativas, mas sem espaço social ou econômico. O que faremos com esse tempo extra de vida se a cultura do descarte começar já aos 50, menos ainda que os 70 de Narayama?
Descartar profissionais 50+ ou 60+ não esbarra apenas em uma questão ética — é também uma miopia estratégica.
Abrindo mão dessas lideranças, as empresas perdem décadas de conhecimento acumulado, visão sistêmica, inteligência emocional e, frequentemente, uma imensa disposição para aprender e colaborar com novas gerações. O etarismo corporativo, muitas vezes disfarçado de “dinamismo” ou “perfil digital”, empobrece equipes, limita a diversidade geracional e compromete a inovação real.
O filme “Um Senhor Estagiário”, estrelado por Robert De Niro, ironiza essa ideia de que pessoas mais velhas seriam um peso. Ao contrário, mostra didaticamente como a maturidade pode ser, de fato, importante em um ambiente dominado pela juventude. A arte, mesmo quando é entretenimento, sempre tem o papel de colocar temas como o etarismo no centro do debate, de forma crítica e provocadora.
Assim, enquanto a tecnologia empurra nossos corpos para uma vida mais longa, as estruturas sociais e econômicas continuam operando sob a lógica da obsolescência humana.
Estamos preparados para conviver com vidas mais longas? Com trabalhadores mais velhos e ativos? Com cidadãos que não aceitam mais ser “velhos demais para contribuir”?
Esse descarte pela idade não se justifica nem do ponto de vista moral, nem do ponto de vista produtivo. E a sociedade que não se prepara para acolher sua própria longevidade está fadada a repetir, em ciclos cada vez mais cruéis, a velha história da montanha.
No Japão mesmo, parece que estão tentando reescrever a balada: empresas criaram políticas para recontratar aposentados, com carga horária reduzida e funções compatíveis com suas habilidades e limitações físicas, se houver. Também estão investindo em formação de lideranças sênior e acompanhamento na transição para a aposentadoria, com suporte psicológico, financeiro e ocupacional.
Iniciativas assim são ótimas e estão presentes em várias empresas e em vários países, mas podem acabar sendo vistas como uma concessão, um paliativo para trabalhadores que não têm o mesmo “valor” que outros, mais jovens.
E não vamos nem falar na questão da Previdência, que é uma das mais urgentes quando se fala em envelhecimento da população e longevidade no trabalho.
O sistema enfrenta pressões crescentes e talvez não dê conta de sustentar financeiramente todos os aposentados nas próximas décadas, especialmente se a exclusão do mercado de trabalho ocorrer cada vez mais cedo.
Se o mercado de trabalho descarta os profissionais 50+, elas vão passar mais de uma década sem emprego formal e sem acesso à aposentadoria. Isso vai gerar um limbo social, onde pessoas que ainda não se aposentaram já não vão conseguir trabalhar – ou viver – com dignidade.
Chegou a hora de fazer a pergunta incômoda: se vamos viver mais, como vamos viver melhor — e com dignidade — até o fim? Vamos continuar empurrando nossos profissionais experientes para essa montanha do descarte, ou vamos realmente mudar essa cultura, aproveitando tudo o que ainda têm a oferecer? O que precisamos fazer de diferente agora, nesse momento, para que isso aconteça?
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Quer saber mais sobre como combater o etarismo no mercado de trabalho e transformar a longevidade profissional em vantagem competitiva? Então, entre em contato comigo. Terei o maior prazer em responder.
Marco Ornellas
https://www.ornellas.com.br/
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