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O desafio da orientação vocacional na modernidade

O mercado de trabalho sofre mudanças de forma significativa. Automação, inteligência artificial e outras tecnologias irão chegar com cada vez mais força. Assim, trabalhos caracterizados por eficiência e repetição estão com os dias contados.

“Trate as pessoas como se elas fossem o que poderiam ser e você as ajudará a se tornarem aquilo que são capazes de ser.”
(Johann Goethe)

O mercado de trabalho sofre mudanças de forma significativa. Essa semana estive na HSM Expo Management e lá pude ouvir diversos pensadores abordar o tema do futuro do trabalho. Automação, inteligência artificial e outras tecnologias irão chegar com cada vez mais força. Assim, trabalhos caracterizados por eficiência e repetição estão com os dias contados.

Um outro ponto é que as gerações de agora provavelmente viverão até os 100 anos. Isso significa que a aposentadoria por volta dos 60 anos é uma ilusão e as pessoas precisarão se reinventar constantemente. Novas competências serão exigidas, algumas profissões irão desaparecer e outras surgirão.

Nesse cenário todo, como fica um jovem que irá escolher seu curso no vestibular? Como ficam os pais ao apoiar os filhos? Qual o papel da orientação vocacional?

Novas perguntas não podem ser respondidas com receitas antigas. Ou melhor, nesse contexto não existe receita pronta. Vivemos um cenário de transição no qual precisamos ter muito cuidado ao falar de orientação vocacional. Muitos testes vocacionais consagrados foram criados em cenários completamente distintos do atual. Nesse contexto, o Coaching pode ser um aliado ao unir ferramentas de assessment/testes vocacionais com um processo reflexivo de autoconhecimento e autodesenvolvimento.

Desde que terminei o projeto de pesquisa no mestrado em psicologia social no qual investiguei a relação entre a geração Y (jovens nascidos entre 1980 e 2000) e a busca de sentido e felicidade no trabalho, tenho me dedicado a aprofundar a relação de jovens com projeto de vida e o sentido do trabalho. Os atendimentos de Coaching de jovens e a relação que tive com seus pais, me permitiu observar alguns aspectos importantes para a escolha profissional. Alguns pontos devem ser considerados ao pensarmos em orientação vocacional:

1. Paradoxo da Escolha.

O psicólogo Barry Schwartz nos mostra como o crescimento assustador do universo de escolhas tornou-se, paradoxalmente, um problema e não uma solução. Devemos lembrar que o jovem ao se deparar com um universo de possibilidades profissionais muitas vezes fica paralisado. É muito diferente escolher carreira hoje se compararmos com 20 ou 30 anos atrás. E ainda, quando temos muitas opções além da angústia da escolha, temos o efeito colateral do arrependimento pós escolha. Escolhi ser arquiteto, mas minha vida não estaria melhor se tivesse escolhido engenharia?

2. A construção da Identidade na Modernidade.

Para o sociólogo Bauman, a identidade é algo a ser inventado, e não descoberto, é, portanto, um processo de construção.  O jovem não vai descobrir sua profissão por um teste vocacional, mas irá se inventar por meio de escolhas sucessivas e conscientes.  Na modernidade líquida – conceito cunhado por Bauman para caracterizar o sentido de impermanência, volatilidade da vida contemporânea -, a fragilidade e a condição provisória da identidade ficam mais nítidas. A identidade é construída em movimento, num processo constante e não de forma estática. Segundo Bauman, “no admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das seguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas, e inegociáveis, simplesmente não funcionam”.  Existem ilimitadas possibilidades de identidades novas, inexploradas e não experimentadas ao alcance do indivíduo. E isso gera uma ansiedade no jovem.

E ainda, quando a modernidade perde suas âncoras tradicionais (família, religião, Estado, valores, etc..), a identidade torna-se uma tarefa individual, de modo que cada pessoa a constrói de acordo com sua biografia. Essa liberdade e responsabilidade na construção da identidade exigem coragem para ousar e confiança nos atos de escolha. Ou como dizia Sartre, “o ser humano está condenado a liberdade”. A liberdade pressupõe uma responsabilidade. O que acontece é que, muitas vezes, esses jovens almejam liberdade, sem desenvolver a responsabilidade necessária para sustentá-la. Cabe ao jovem e não aos pais, investigar as áreas de atuação que lhe interessam, conversar com os profissionais, ler sobre o que acontece no mundo e nas profissões, etc…

No Brasil, Antônio da Costa Ciampa é referência no estudo da identidade e aborda o conceito remetendo à ideia de metamorfose, num processo de constante formação e transformação em que o indivíduo assume diferentes papéis na relação com o outro. A metamorfose acontece na busca por significado e na invenção de sentido. Assim, é uma ilusão colocar no jovem o peso de escolher uma única carreira que irá representar todos os seus talentos, desejos, sonhos e ambições. É preciso dar leveza ao processo, e saber que a escolha de uma profissão é apenas um primeiro passo no seu processo de construção de identidade. Escolher um curso no vestibular não pode ser tratado de forma fatalista, no sentido de: “Escolha algo que você fará para o resto da vida.”  Pode ser que o jovem se encontre nessa profissão, mas pode ser que ele ainda experimente outras áreas.

Para Erik Erikson, a essência da identidade está em responder a questão: “Quem sou eu?” A tarefa de construir a identidade tornou-se algo do tipo “faça você mesmo”. E na modernidade líquida comprometer-se com uma única identidade parece ser um negócio arriscado. O processo de Coaching pode apoiar o jovem a responder a pergunta “Quem sou eu?” e ao mesmo tempo estimular o protagonismo para que ele mesmo trace seu caminho.

Sem as estruturas tradicionais para oferecer sustentação, resta ao jovem traçar o caminho, ou ainda, caminhos. Outrossim, torna-se importante apoiar o jovem nesse empreendimento, não indicando uma direção, mas sim fornecendo subsídios para que ele perceba melhor a si mesmo, seus valores, influenciadores, crenças, sua história de vida, para que assim possa projetar uma identidade aderente e coerente. E ainda, estimular a experimentação de algo que se deseja num processo constante de construção e transformação.

3. O que é uma carreira de sucesso?

Nos atendimentos de Coaching com jovens pude perceber que em determinados momentos surge um ruído entre conceitos que são dos próprios jovens e que são dos seus pais. Um dos ruídos mais comuns está relacionado à definição de uma carreira de sucesso.

Muitas vezes, o jovem é influenciado por definições de sucesso que são de seus pais e família, porém que muitas vezes não estão alinhadas com seus valores pessoais. E aí, surge uma tensão: sigo os meus valores ou o que aprendi com os meus pais?

Já atendi jovens em que a definição de sucesso estava ligada a uma carreira mais informal, fora do escritório, em contato com a natureza. Contudo, o sonho dos pais era uma carreira tradicional e de status.

4. Trabalho não é apenas obrigação, dever e sofrimento. Por outro lado, fazer o que amamos não é apenas fazer o que gostamos.

Nesse ponto temos um conflito geracional. Sabemos que as gerações anteriores (baby-boomers, tradicionalistas, geração X) tinham uma definição de trabalho mais “dura e fria” que as gerações atuais (geração Y e Z). Hoje, os jovens buscam um trabalho com sentido e que possa ser a expressão deles no mundo. Um trabalho que tenha significado, aprendizado constante e reconhecimento. Eles querem fazer o que amam. As gerações anteriores tinham uma relação menos romântica e mais prática com o trabalho. O trabalho estava muito mais ligado a oferecer uma renda, dar a base para a construção da família, proporcionar uma boa educação para os filhos e uma aposentadoria. E, se para isso fosse preciso trabalhar com algo “chato”, tudo bem!

Ou seja, os pais quando vão orientar os filhos no ensino médio, muitas vezes não percebem essa dissonância entre os significados do trabalho. O mais saudável é um diálogo aberto para encontrar o caminho do meio. Os pais precisam entender que encontrar um trabalho com sentido é a nova moeda de valor para os jovens e os jovens precisam sair da ilusão de que um trabalho com sentido é apenas fazer o que eles gostam. Um trabalho com sentido também terá dor e sofrimento.

5. Os ciclos biográficos nos afetam.

Rudolf Steiner ao nos ensinar sobre os ciclos biográficos, esclarece como cada fase da vida é marcada por seus aprendizados e desafios. Assim, não adianta um pai com 50 anos esperar o mesmo discernimento e maturidade de seu filho de 17 anos.

Lievegoed detalha cada ciclo da construção biográfica. Nesse processo existem crises comuns que norteiam nossa evolução. Cada indivíduo adota uma atitude diferente diante das crises, cada biografia torna-se única e singular, com caráter irrepetível. Para Lievegoed, o terceiro setênio (fase dos 14 aos 21 anos) culmina na crise de identidade aos 21 anos. E o quarto setênio (período dos 21 aos 28 anos) culmina na crise dos talentos aos 28 anos. Para o autor, é muito importante que o jovem experimente as diversas atuações possíveis no quarto setênio para que possa buscar e consolidar o seu lugar no mundo nas fases posteriores da vida. E também, é natural a indecisão do jovem em relação a um curso, pois ele vive sua crise de identidade, ainda precisa entender quem ele é.

6. Pais-helicóptero e filhos apáticos.

Quando estudei a Geração Y, me deparei com um termo interessante: “os pais-helicóptero”. ‘Pais-helicóptero’ são os pais que estão sempre girando em torno dos filhos. Praticamente os embrulham em plástico-bolha para que eles não se machuquem, não entrem em conflitos e não sofram. Muitos desses pais, fazem de seus filhos, uma “poupança”. Ou seja, investem o máximo possível em termos de formação e esperam um retorno por isso.

O perigo nesse cenário é que as gerações Y e Z acabam não desenvolvendo resiliência, aceitação do fracasso, habilidade para lidar com frustrações. Com os pais atuando de forma tão significativa na vida dos filhos, muitas vezes surge uma apatia pelo lado do jovem. Para que me movimentar se os meus pais darão um jeito? Essa geração chega ao mercado de trabalho com diversas dificuldades para lidar com o dia a dia laboral.

Enfim, o contexto atual trouxe maior complexidade dentro da questão de orientação vocacional. As profissões se multiplicaram, os ciclos de carreira se tornaram mais curtos, o ciclo de vida aumentou, os pais assumiram novos papéis, os filhos adotam outra postura. Diante de tantas mudanças, o caminho a ser seguido é o da tomada de consciência e a responsabilidade. Ou seja, tantos os pais quantos os filhos precisam entender a influência dos papéis, as mudanças no mercado de trabalho. E os filhos aos poucos, precisam entender que a liberdade que conquistaram exige responsabilidade e empenho da parte deles na construção da sua visão futuro. E ainda, é preciso salientar que o que o jovem precisa não é apenas de uma carreira, mas sim um projeto de vida. Na definição de Damon, projeto de vida é uma intenção estável e generalizada de alcançar algo que é ao mesmo tempo significativo para o eu e gera consequências no mundo além do eu. Ou seja, o jovem precisa encontrar um objetivo de longo prazo no qual ele sinta que vale a pena se comprometer. O processo de Coaching pode apoiar o jovem a encontrar um caminho com significado e caminhar em direção a si mesmo. Afinal, como dizia Soren Kierkegaard:  “a mais profunda forma de desespero é escolher ser outro que não si mesmo.”

Taynã Malaspina é graduada em Comunicação Social pela ESPM, com mestrado e doutorado em Psicologia Social pela PUC-SP. No mestrado, estudou a relação entre trabalho, felicidade e sentido para jovens. Atualmente faz parte do núcleo de pesquisa do programa de doutorado em Psicologia Social (PUC-SP) e investiga o tema de projeto de vida. Autora do livro “Geração Y e busca de sentido na modernidade líquida e também do livro “O Trabalho contemporâneo no Brasil: desafios e realidades”. Dentro do mundo organizacional atuou na área de marketing de empresas como: Camargo Corrêa, Amanco e Samsung. Sócia-diretora da Oficina da Estratégia, consultoria especializada em pesquisa de mercado e planejamento estratégico. Coach formada pelo Instituto Ecossocial, com certificação ACC pela International Coach Federation (ICF). Formação em Coaching de Conflitos pelo Instituto Trigon – Entwicklungsberatung. Também participou do workshop de Comunicação Não Violenta no Instituto Ecossocial. Professora no curso de graduação em Administração e Recursos Humanos nas disciplinas de Gestão de Pessoas, Psicologia Aplicada, Ética e Qualidade de Vida. Fundadora do Movimento por um Trabalho com Sentido.
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