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Massacre de Suzano: a seita dos Chans e o mundo das imagens

A maior parte dos artigos vindos dessa área desconsidera o estudo histórico de grupos desse tipo e, pior ainda, não dão atenção para a própria estrutura dos fóruns, que são como que seitas organizadas.

Não há dúvida que os assassinos do massacre da escola Raul Brasil, em Suzano, passaram pelo fórum virtual dos Chans. Trata-se de um grupo de anônimos na Internet que cultiva as armas, o “fazer justiça” e, enfim, a morte. Há vários desses grupos pelo mundo virtual, em todo tipo de língua. Os estudos sobre esses grupos, infelizmente, é levado adiante, no mundo todo, principalmente por psicólogos. A tendência dos psicólogos, no caso, é a de reduzir a visão a questões de bullying, baixa estima, narcisismo, predisposições suicidas, descaso dos pais etc. A maior parte dos artigos vindos dessa área desconsidera o estudo histórico de grupos desse tipo e, pior ainda, não dão atenção para a própria estrutura dos fóruns, que são como que seitas organizadas.

Ações de ataques seguidas de suicídio são bem diferentes de suicídio solitários, de pessoas depressivas etc. Ações de ataques são feitas com objetivos grandiosos.

Em geral, o que se busca no mundo antigo, com tais ações, é a glória. Não é necessário, no caso, qualquer visão substancialmente transcendente. Basta que o nome seja inserido no panteão dos deuses. Mas não como uma homenagem individual que, afinal, não poderia ser observada pelo autor, pois este já está morto quando o respeito da comunidade vier a cair sobre ele. Trata-se, no caso, de não desobedecer aos deuses, cumprir seu destino, não deixar que se impere o caos. O cosmos precisa ser mantido. Ou seja, a harmonia tem de prevalecer. Quem nasceu para herói, então, que seja herói. Foi por isso que Aquiles voltou à Guerra de Troia, para cumprir seu destino. Não honrar a morte de seu companheiro, matando o adversário, seria tirar a Terra do seu eixo, seria fazer o Cosmos virar o Caos.

Mas como ocorre a glória, ou o que restou dela, no mundo moderno?

A visão moderna apela para a transcendência: Cristo se oferecendo na Cruz, os kamikases se jogando contra navios aliados e ganhando uma atenção do Imperador divino, os terroristas do mundo árabe atual se colocando a caminho das mil virgens, e por aí vai. Mas o que resta da glória, na comunidade dos Chans, nada tem de apelo ao transcendente. Nem se trata de uma volta à glória antiga. Não se quer passagem para o Céu ou outra vida, nem se quer entrar para o panteão dos heróis cultivados na memória dos que ficaram. É aqui que os estudiosos erram. Imaginam que com o movimento No Notoriety (sem notoriedade), eles podem barrar as ações dos Chans. Basta não publicar nada sobre eles, e então eles perderiam a motivação. Não é isso. Não se consegue barrá-los por meio dessa atitude. Pois os Chans não querem notoriedade pela imprensa comum, e nada querem a posteriori. Eles obtém a reverência necessária no exato momento apoteótico da ação. E isso, de maneira real. Pela profusão na Internet e perante outros Chans, das imagens de sua ação. Trata-se de espetáculo. Minutos antes do final da ação, na hora do suicídio, eles ainda olham a comunidade que já os glorifica, gritam por eles, transmitem as fotos em tempo real e os cultiva. Tudo é questão de minutos. Mas vale a pena. Pois a endorfina obtida ali é maior que um gol marcado, uma droga, um êxtase religioso ou um êxtase sexual. É na verdade um êxtase e um ecstasi (no sentido heideggeriano), ou seja, um gozo e também uma confluência do tempo, um acontecer que funde passado, presente e futuro num só ato. Isso é essencial para a glória moderna, que é glória individual. Mas, nesse caso, uma glória realmente vivida, sem apelo transcendental. Isso singulariza dos Chans e grupos similares.

Nada que se faça para barrar o aparecimento do feitos desses jovens na imprensa regular, mudará as coisas. A ideia dos Chans é a obtenção da supremacia. Portanto, prova-se para si mesmo que se é melhor que outros, tidos como melhores, exatamente pelo ato de matá-los, “fazer justiça”, e ultrapassar a morte pelo suicídio – os outros, os mortos ou feridos, correram, fugiram, foram covardes. O atirador se mata, em comunhão com sua arma, sua adoração. Morre completamente feliz. Não fugiu. Em um momento único, foi ungido rei. E sempre o será, pois a comunidade, nos minutos antes de sua morte, presencia todas as imagens e sabe que está diante de alguém que não voltou atrás. Que se impôs. Aliás, quando alguém está disposto a dar esse passo, começa a postar fotos referentes ao que vai fazer, denuncia o assunto, deixa claro para todos que algo grande vai ocorrer, que devem ficar atentos, pois a missão de bravura e supremacia está para acontecer. E acontece.

Todos os meus estudos sobre essas comunidades, de uns três anos para cá, me deram condição de ver essa regularidade de comportamento, e a regularidade da cerimônia instantânea de cultivo à gloria. Quando Bolsonaro cria, a partir do poder, o cultivo às armas, e quando a Taurus vê seu lucro crescer, essas comunidades ficam visivelmente excitadas. Jamais faltou nessas comunidades frase de regozijo com a morte da Marielle. Não por Marielle, mas pelo modo como ela morreu. Os tiros, a ação, a aventura – tudo isso encanta esses jovens. Mas os assassinos de Marielle não foram comemorados. Não se mataram. Não foram dignos. Isso, para os Chans, ficou bem claro. A família Bolsonaro é vista com bons olhos por eles, mas por estarem vivos, ainda são de segunda categoria, são covardes.

Paulo Ghiraldelli Jr., 62, filósofo.

Paulo Ghiraldelli Jr é filósofo, professor e escritor. Tem doutorado em filosofia pela USP e doutorado em filosofia da educação pela PUC-SP. Tem mestrado em filosofia pela USP e mestrado em filosofia e história da educação pela PUC-SP. Tirou sua livre-docência pela UNESP, tornando-se professor titular. Fez pós-doutorado no setor de medicina social da UERJ, como tema “Corpo – Filosofia e Educação”. É bacharel em filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (S. Paulo) e é licenciado em Educação Física pela Escola Superior de Ed. Física de S. Carlos, hoje incorporada pela Universidade Federal de S. Carlos (UFSCar). Foi pesquisador nos Estados Unidos e na Nova Zelândia. É editor internacional e participante de publicações relevantes no Brasil e no exterior. Possui mais de 40 livros em filosofia e educação. Trabalhou junto da produtora de TV e filósofa Francielle Maria Chies no programa Hora da Coruja da FLIX TV. É professor de filosofia aposentado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Trabalha atualmente como diretor e pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA).
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