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Entre o Atalho e o Abismo: O Risco de Emburrecermos com a IA

A IA pode ser aliada, mas quando usamos tecnologia para evitar pensar, sentir ou decidir, perdemos algo essencial. Descubra como manter o pensamento crítico vivo — e por que o esforço cognitivo é a chave para preservar nossa humanidade.

Entre o Atalho e o Abismo: O Risco de Emburrecermos com a IA

Entre o Atalho e o Abismo: O Risco de Emburrecermos com a IA

Quando a tecnologia nos poupa do esforço de pensar, o que perdemos é mais do que tempo: é a própria inteligência humana que pode estar em jogo.

Nos últimos meses, uma inquietação vem me acompanhando com força crescente. Percebo, especialmente entre os mais jovens, uma recusa ativa à leitura de livros que exigem reflexão, à escrita autoral, à escuta do próprio pensamento. Mais do que isso: há quem pergunte à inteligência artificial o que deve sentir diante de um término amoroso, como reagir a um conflito familiar ou o que escrever em uma mensagem para alguém querido. Como se a experiência de ser humano pudesse ser resolvida por um algoritmo.

Diante disso, me pergunto:

“A IA está nos emburrecendo? Ou será que somos nós que estamos escolhendo abdicar do processo cognitivo e afetivo de existir?”

Como psicanalista, mentora, educadora, coach, como alguém que pensa e observa, não posso ignorar essa inquietação. E é com ela que este texto começa – não para demonizar a tecnologia, mas para refletir honestamente sobre a forma como a estamos integrando (ou substituindo) em nossa vida mental.


A falsa promessa do atalho

A inteligência artificial oferece algo muito sedutor: o atalho. Respostas rápidas, bem escritas, organizadas, convincentes. Mas há uma diferença imensa entre obter uma resposta e elaborar um pensamento.

Ao saltarmos direto para o destino, a resposta, perdemos a riqueza do percurso: a dúvida, o erro, a frustração, a curiosidade, a reorganização das ideias. E é nesse processo – lento, trabalhoso, às vezes desconfortável – que o pensamento crítico se desenvolve. Ao substituir esse caminho por uma resposta pronta, corremos o risco de trocar a cognição profunda pela ilusão de saber.

Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano, alerta para o esvaziamento da experiência reflexiva em uma cultura que valoriza o desempenho, a transparência e a positividade a qualquer custo. Em Sociedade do Cansaço, ele argumenta que vivemos uma era de hiper produtividade onde o sujeito é pressionado a funcionar, mas não a pensar. “A ausência de dor não é alegria, mas anestesia”, diz ele. E a IA, nesse contexto, pode nos anestesiar do desconforto fundamental que impulsiona o pensamento real.


O encanto que só um livro inteiro revela

Ler uma frase impactante pode ser bonito. Mas ler o livro inteiro e descobrir onde aquela frase mora, no meio de tantas outras ideias, contextos, dúvidas e revelações… isso é outra coisa. É como escavar lentamente até encontrar um diamante e, ao encontrá-lo, perceber que ele só brilha porque foi gerado pela pressão do todo.

Li tantos livros em minha vida que perdi a conta. E sempre foi uma experiência enriquecedora, ainda que eu discordasse profundamente do que ali estava escrito: com certeza eles me ajudaram a forjar quem sou. Peguei aqui, aleatoriamente, alguns livros em minha estante e, também aleatoriamente, separei frases:

Viktor Frankl – Em Busca de Sentido

O autor, que sobreviveu a campos de concentração, escreve:

“Entre o estímulo e a resposta existe um espaço. Nesse espaço está o nosso poder de escolher a nossa resposta.”

Mas o que essa frase significa de verdade só se revela quando lemos todo o testemunho ético, corajoso e profundamente humano que a sustenta. É nesse contexto que ela brilha. E transforma.

Clarice Lispector – A Hora da Estrela

Clarice escreve:

“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.”

Mas para compreender esse desejo indizível, é preciso acompanhar Macabéa, personagem pequena e imensa, página por página. A frase não vive sozinha: ela pulsa porque nasceu de uma história inteira.

Edgar Morin – A Cabeça Bem-Feita

Um dos meus preferidos, diz ele:

“É preciso ensinar a viver.”

Trata-se de muito mais do que um aforismo bonito. Morin fala da educação como um ato existencial, ético, planetário. É no corpo do texto, cheio de conexões entre ciência, poesia e política, que essa frase ganha densidade e urgência.

Hannah Arendt – A Vida do Espírito

Difícil escolher apenas um livro de Arendt. Então escolhi a frase:

“O pensar nunca obedece, e o obedecer nunca pensa.”

Ler essa frase num post pode até provocar um arrepio. Mas é ao longo do livro, onde ela reflete sobre o julgamento, a banalidade do mal e a importância do pensamento como resistência, que a ideia se inscreve na alma. Não é uma provocação: é um chamado à responsabilidade.

Domenico De Masi – Ócio Criativo

Neste livro, De Masi nos convida a reimaginar o trabalho, o tempo e a vida:

“O homem do futuro será aquele que souber misturar trabalho, estudo e lazer numa única atividade.”

Mas esse futuro só ganha forma quando lemos as análises culturais, históricas e filosóficas que o autor apresenta. Ele não está vendendo um estilo de vida, mas propondo um deslocamento profundo da lógica produtivista que nos adoece.

Ler o todo exige tempo, mas nos dá profundidade. É como conhecer alguém de verdade, e não só ver seu perfil. As frases soltas tocam, sim. Mas o livro inteiro transforma. E talvez seja isso que estamos perdendo quando preferimos atalhos: a beleza lenta de ser atravessado por uma ideia inteira.


O cérebro que deixa de pensar, atrofia

Do ponto de vista da neurociência, esse modelo de terceirização cognitiva é perigoso. O cérebro humano é plástico: ele se modifica conforme o uso. Cada vez que enfrentamos um desafio cognitivo – ao ler um texto denso, escrever uma reflexão própria, organizar ideias complexas – estamos fortalecendo conexões neurais. Literalmente fazendo crescer nosso cérebro.

Mas o contrário também é verdade. Ao evitarmos o esforço cognitivo, essas conexões se enfraquecem. Maryanne Wolf, em O Cérebro no Mundo Digital, alerta para os efeitos da leitura superficial induzida pelas telas:

“Se perdermos a capacidade de leitura profunda, perderemos a capacidade de pensar profundamente.”

Para ela, o cérebro leitor do século XXI está se moldando à velocidade, à fragmentação e à gratificação instantânea – o oposto da construção reflexiva que a leitura complexa proporciona.

Além disso, o uso compulsivo de tecnologias interativas com recompensas rápidas, notificações constantes e soluções prontas, compromete a memória de longo prazo, a atenção sustentada e a empatia. Estamos criando cérebros que pulam de estímulo em estímulo, mas não mergulham em nenhum.


Quando até os sentimentos são terceirizados

Há algo ainda mais delicado nessa equação. A inteligência artificial não está apenas substituindo o pensamento – ela está, em alguns casos, tentando substituir a vivência emocional. Já vi jovens perguntarem à IA o que fazer com sua tristeza, se “devem” perdoar alguém, como se sentir diante de uma ofensa, ou até como terminar um relacionamento de forma “correta”. E até profissionais da área perguntarem como lidar com este ou aquele paciente.

O mais interessante foi um adolescente que me afirmou, com certeza, que a IA era uma grande mentira. E explicou: “perguntei a ela o que era a vida, e não soube me responder!”. Como assim?! Expliquei a ele que essa era uma pergunta filosófica que nenhum ser humano conseguira responder – mas para ele (e para quantos mais?) a IA é uma entidade superior à parte e deve ter todas as respostas.

Esse tipo de uso revela uma abdicação progressiva da escuta interna, do sentir ambíguo, do conflito necessário que atravessa qualquer experiência emocional autêntica. Ao buscar uma resposta “correta” fora de si, o sujeito passa a se afastar de sua singularidade, da construção ética de suas próprias decisões, da travessia subjetiva que define o amadurecimento.

Estamos correndo o risco de criar não apenas mentes superficiais, mas consciências padronizadas – moldadas por respostas estatísticas, descoladas do desejo, da história e da imaginação.


O pensamento crítico em risco

O que está em jogo, portanto, não é apenas o conhecimento, mas a capacidade de pensar – e, com ela, a liberdade. A juventude que evita o esforço da leitura, que copia respostas geradas por IA sem compreender, que não aprende a escrever com a própria voz, está sendo privada de um direito fundamental: o de construir sua própria maneira de ver o mundo.

Paulo Freire, em A Importância do Ato de Ler, nos lembra que “ler o mundo precede ler a palavra”. Ou seja, a leitura não é apenas decodificação, mas construção de sentido. Quando a escola (ou a vida digital) educa apenas para repetir, copiar, obedecer ou simplificar, estamos cultivando sujeitos que consomem respostas – não aqueles que as interrogam. E sem questionamento, não há pensamento crítico, nem autonomia ética.

Mais grave ainda: ao evitarmos o desconforto do pensamento próprio, abrimos espaço para formas sutis de controle e conformismo. Afinal, quem não pensa por si mesmo pode ser conduzido com mais facilidade – pela máquina, pelo algoritmo, pelo sistema.


IA: extensão ou substituto da mente?

Nada disso significa que a inteligência artificial deva ser rejeitada. Ao contrário: ela pode ser uma ferramenta extraordinária de expansão cognitiva, se usada com consciência. Pode estimular debates, facilitar acesso a informações, inspirar ideias, permitir conexões antes impensáveis. Mas, para isso, é preciso que ela seja usada como extensão da mente, e não como substituta do pensamento.

É necessário recuperar o lugar da dúvida, da complexidade, do esforço. Usar a IA para nos ajudar a pensar melhor – e não para pensar no nosso lugar. Há uma diferença radical entre consultar uma ferramenta e submeter-se a ela.

Eu mesma estou passando por uma experiência no mínimo curiosa: há 4 meses me dedico a escrever um livro baseado em minhas experiências profissionais, sobre um trabalho acadêmico que fiz em 2014. Revi processos de Coaching desde 2007 e cheguei a lugares, no mínimo, curiosos. Estou usando a IA? Sim. Com ela discuto sobre conhecimentos profundos que tenho e reflexões as quais chego. Porque conheço, interajo. Não faço da IA a minha muleta.


E o futuro do pensamento?

O que me preocupa, no fim, não é a inteligência artificial. É a inteligência humana. É o risco de perdermos, por comodismo ou ignorância, a chance de exercê-la. O pensamento crítico, reflexivo, ético e criativo é uma conquista, e precisa ser cultivado como tal. Isso exige tempo, silêncio, desconforto, esforço. Exige leitura, escuta, escrita, dúvida.

Se não formos nós a fazer isso, com coragem e presença, a máquina o fará. Mas será outra coisa. E talvez, ao fim de tudo, a inteligência artificial esteja apenas revelando o que estamos dispostos a abandonar: a difícil e bela tarefa de sermos plenamente humanos.

Para ir além: leituras que inquietam e despertam

1. Maryanne Wolf – O Cérebro no Mundo Digital

Um alerta sobre como a leitura profunda está sendo substituída por padrões digitais de velocidade e distração. Leitura essencial para quem deseja compreender o impacto da tecnologia no cérebro.

2. Paulo Freire – A Importância do Ato de Ler

Mais do que uma defesa da alfabetização, é um manifesto pelo direito de pensar o mundo com autonomia. Educação como prática da liberdade.

3. Byung-Chul Han – Sociedade do Cansaço

Filosofia afiada sobre a cultura do desempenho e da positividade que nos esvazia de pensamento e esgota emocionalmente.

4. Neil Postman – Technopoly

Uma crítica profunda à submissão da cultura à tecnologia. Mostra como a técnica, se não for questionada, pode colonizar a linguagem, o saber e a consciência.

5. Sherry Turkle – Alone Together

Reflexões fundamentais sobre o impacto da tecnologia nas relações humanas, na identidade e no senso de intimidade. Um livro para quem quer entender o que está se perdendo na era da conexão constante.


Nota da autora

Este texto foi escrito a partir de experiências reais, inquietações próprias e diálogos provocadores – pensados e planejados – com a inteligência artificial. A IA foi usada aqui como ferramenta crítica de reflexão, não como substituta do pensamento. Porque, mais do que nunca, pensar continua sendo um ato humano.


Gostou do artigo?

Quer saber mais qual a diferença entre usar a inteligência artificial como extensão da mente e usá-la como substituta do pensamento? Então, entre em contato comigo. Terei o maior prazer em conversar a respeito.

Isabel C Franchon
https://www.q3agencia.com.br

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Palavras-chave: inteligência artificial, pensamento crítico, cognição, uso consciente da tecnologia, como a IA afeta o pensamento humano, riscos do uso excessivo da IA, inteligência artificial e pensamento crítico, a importância do pensamento crítico, substituição do pensamento pela IA, impacto da tecnologia na cognição
Isabel C Franchon, Coach, Trainer e Consultora em Cultura Organizacional, atua com Desenvolvimento Profissional e Pessoal através de palestras, Workshops, Treinamentos, Coaching, Mentoring e Oficinas. É Psicanalista atuante. Graduada em Jornalismo, tem MBA em Desenvolvimento Humano de Gestores, pela FGV; Pós-graduação em Transdisciplinaridade em Saúde, Educação e Liderança, pela Universidade Holística Internacional; Especialização em Marketing pela MM School; Formação em Compliance Anticorrupção, pela LEC; Especialização em Metodologia QEMP para empreendedores, pela Clinton Education. Fez formação em Master, Executive, Leader & Business Coach, pelo Behavioral Institute. Certificada em Positive Coaching Com Robert Dilts e Richard Moss. É membro do International Coaching Council (ICC) desde 2008. Formação em Psicanálise pelo Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP), Coautora do livro O Poder Transformador do Grupo com o capítulo “Coaching em Grupo: Holístico, Sistêmico, Integral” (Edições Besouro Box, 2024). Membro do GEC – Grupo de Excelência em Coaching – Centro de Conhecimento do CRA-SP.
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