
Fé em Chamas: A Intolerância Religiosa e o Medo do Sagrado no Mundo Atual
“Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz.”(Platão)
A história da humanidade sempre esteve entrelaçada com a fé — e com a violência contra ela. Na Idade Média, as guerras santas, as cruzadas e a Inquisição marcaram uma das fases mais sombrias da civilização. Não existiam internet nem redes sociais, mas o ódio e o fanatismo encontravam caminhos para se espalhar. O sagrado foi manipulado por reis, impérios e clérigos, transformado em instrumento de dominação e medo.
Séculos depois, o cenário se repete sob novas formas. Agora, igrejas, sinagogas, mesquitas e templos são incendiados ou invadidos, enquanto fiéis são mortos em oração. A intolerância religiosa — tema que parecia pertencer aos livros de história — volta a ocupar as manchetes.
No Brasil, as maiores correntes do cristianismo — a Igreja Católica Apostólica Romana e o Protestantismo (Evangélico) — vivem momentos contrastantes: enquanto o número de evangélicos cresce, o de católicos diminui. Paralelamente, as religiões de matrizes africanas, como o Candomblé e a Umbanda, continuam sendo alvo de ataques e preconceito — um eco colonial ainda não superado.
Em outras partes do mundo, o cenário é igualmente grave. Na China, o governo promove uma política sistemática de repressão religiosa, especialmente contra muçulmanos uigures, cristãos e praticantes do Falun Gong. Na Índia, minorias sofrem com o avanço do nacionalismo hindu. No Oriente Médio, a aplicação da sharia em alguns países retira das mulheres direitos básicos e criminaliza a liberdade de crença.
A geografia muda, mas o drama é o mesmo: o poder teme o espírito livre.
O medo do sagrado
Sempre que a espiritualidade autêntica floresce, ela desafia o poder estabelecido. As grandes tradições religiosas — do cristianismo ao islamismo, do judaísmo às crenças afrodescendentes — ensinam valores universais como dignidade humana, amor ao próximo, perdão, desapego ao poder e justiça. Paradoxalmente, são esses valores que ameaçam os sistemas de controle político e econômico.
Por isso, desde os imperadores medievais até os líderes autoritários contemporâneos, há quem tema a força da fé. Na China, templos demolidos e comunidades inteiras enviadas a “campos de reeducação”. No Afeganistão, mulheres impedidas de estudar em nome de uma interpretação extremista de textos religiosos. Na Europa, o medo da imigração islâmica reacende o discurso da intolerância e do fechamento de fronteiras.
Aquilo que deveria servir como ponte entre os povos continua sendo usado como arma política — de manipulação, segregação e domínio.
Migrações e novos muros
A globalização e as intensas migrações humanas do século XXI trouxeram nova complexidade à questão religiosa. A fome, as guerras, as mudanças climáticas e as perseguições têm provocado um dos maiores êxodos da história recente, em constante crescimento na última década.
Segundo o Relatório de Tendências Globais do ACNUR (abril de 2025), há 122,1 milhões de pessoas deslocadas à força — um número superior ao de qualquer outro período contemporâneo. O Instituto de Pesquisa da Paz de Oslo (PRIO) contabiliza 11 guerras em andamento no mundo. Milhões de pessoas fogem levando não apenas suas malas, mas também suas crenças e tradições culturais.
Nos países que as recebem, aumentam as tensões. As discussões sobre migração, integração e costumes religiosos tornam-se terreno fértil para o preconceito e a instrumentalização política. Líderes se aproveitam do medo coletivo — do “outro”, do “diferente” — para reforçar discursos nacionalistas, xenófobos e fundamentalistas.
Ontem, queimavam-se “hereges”. Hoje, queimam-se templos, sinagogas e mesquitas. A história muda de cenário, mas a dificuldade humana em aceitar o que não compreende permanece a mesma.
O vazio e a esperança
A perseguição contemporânea não nasce apenas do fanatismo, mas também do vazio espiritual que marca o mundo moderno. A espiritualidade substituída pelo consumo, e o sentido de transcendência, pela busca incessante de poder. Em um planeta que perdeu seu eixo moral, a crença do outro se torna incômoda — porque reflete aquilo que nos falta: propósito, esperança e amor.
Quando um governo persegue a fé, teme a consciência que ela desperta. Quando uma sociedade destrói um templo, destrói a parte de si que ainda acredita no invisível.
Luz sobre as cinzas
Quando uma igreja é incendiada, não queima apenas um prédio — queima um símbolo de esperança. Quando um terreiro é destruído, perde-se parte da alma ancestral de um povo. E quando uma mesquita é atacada, ataca-se o direito universal de buscar o divino. Defender o sagrado — qualquer expressão dele — é defender o direito à consciência. E sem consciência, nenhuma civilização sobrevive.
“A escuridão não pode expulsar a escuridão; só a luz pode fazer isso.” (Martin Luther King Jr.)
Enquanto houver poder sendo usado para silenciar o divino, o mundo continuará doente. Mas se houver coragem para amar, compreender e acolher — então, finalmente, a fé deixará de ser bandeira e voltará a ser ponte.
E só então, o ser humano poderá dizer que aprendeu a lição mais antiga — e mais esquecida — da história: não existe paz sem liberdade espiritual.
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Quer entender como o medo do diferente ainda alimenta a intolerância religiosa — e como podemos reacender a luz da fé como ponte, e não como chamas? Então, entre em contato comigo. Terei o maior prazer em falar a respeito.
Sandra Moraes
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