Paulo Ghiraldelli Jr, Colunista em Cloud Coaching https://www.cloudcoaching.com.br/author/pauloghiraldelli/ Mon, 09 Dec 2019 14:45:46 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.9 https://www.cloudcoaching.com.br/wp-content/uploads/2023/10/cropped-favicon-1-32x32.png Paulo Ghiraldelli Jr, Colunista em Cloud Coaching https://www.cloudcoaching.com.br/author/pauloghiraldelli/ 32 32 165515517 Ou se conversa sobre democracia e cidadania ou não se fala do que interessa https://www.cloudcoaching.com.br/ou-se-conversa-sobre-democracia-e-cidadania-ou-nao-se-fala-do-que-interessa/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=ou-se-conversa-sobre-democracia-e-cidadania-ou-nao-se-fala-do-que-interessa https://www.cloudcoaching.com.br/ou-se-conversa-sobre-democracia-e-cidadania-ou-nao-se-fala-do-que-interessa/#respond_22029 Mon, 09 Dec 2019 14:30:18 +0000 https://www.cloudcoaching.com.br/?p=22029 Nunca o economicismo decidiu pleitos. Porque somos condenados ao mimo, somos seres da vida enquanto vida que só se entende vida com abundância e mimo.

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“Nós estamos condenados ao mimo”, disse Peter Sloterdijk em uma conversa com seu colega Thomas Macho. Não há possibilidade de sermos humanos sem sermos mimados, porque a antropogênese é um processo de mimo. Só nos tornamos o que somos porque em determinado momento pudemos ser mais agraciados que outros em termos de proteção da prole. Tornamo-nos ricos porque ganhamos chance de riqueza. E isso ocorreu quando proto-humanos, por conta de chance de acolhimento, começaram a passar para a espécie as características de alguns indivíduos que clamaram – e foram inusitadamente atendidos –  por um maior cuidado das progenitoras que, então, se tornaram mães. Desenvolveu-se a neotenia, fruto exclusivo do mimo.

Desse fato antropológico inicial nunca mais escapamos. Dali para a frente, nos mantemos como os seres da Terra que dependem de maternidade, e cujo percurso se caracteriza cada vez mais pelo plus que é o mimo. A democracia nada é senão uma das formas históricas determinadas por essa nossa gênese atrelada ao mimo. Ela é o lugar em que aumentamos os anos da infância e juventude, por um lado, e é também o campo no qual não são vigentes apenas direitos, mas o direito de criar direitos. Nada mais mimado que isso.

Quando olhamos os humanos por meio dessa narrativa, deixamos de lado a ideia de que somos frutos da necessidade e da carência, para entendermos que somos os rebentos da abundância.

Então, toda vez que, no âmbito moderno, obedecemos o pensamento da esquerda e da direita que se pautam pela ideia de que podemos viver sem mimo, que nossa vida é apenas a vida nua, como teorizou Agamben, e não a vida ética, pecamos por negar nossa origem. Pecamos por seguir a Internacional Miserabilista, ou seja, a visão de que somos seres da necessidade e não do plus, que somos frutos da dureza e não do mimo. E então nos preocupamos com políticas populistas de “mínimos”. O neoliberalismo com o “estado mínimo”, a social democracia com a “satisfação das necessidades básicas”. Recusamos a conversa sobre a melhoria da democracia, que seria a melhor conversa, que é a de ampliar direitos no projeto de invenção de novos direitos.

O realismo é sem dúvida a posição mais nefasta e aquela na qual abandonamos nossa origem promissora. O realismo é fascista, é o culto da vida dura.

Quando alguém diz que não podemos pensar de barriga vazia, uma tal verdade pode estar cumprindo uma função ideológica – quase sempre está. Pode estar a serviço da Internacional Miserabilista. Pode simplesmente estar nos induzindo a acreditar que nosso destino é o destino animal, o de conseguir a barriga cheia para estar feliz. Mas nem mesmo os animais são totalmente assim. Hoje sabemos disso, uma vez que o cão se tornou da família. A indústria de mimo do cão – a indústria pet – nos prova isso.

A esquerda e a direita atuais trabalham com a ideia de uma antropologia que despreza a ideia da evolução enquanto uma ideia de implementação de políticas do mimo.

Tudo que é luxo é secundário. Esquece-se que o próprio capitalismo é gerado pelo luxo, como bem lembrou Sombart. Então, a democracia, que é lugar que todos falam e, por todos falarem, há uma profusão maior de mimo reivindicado, é o que é desprezado.

Esquerda e direita são economicistas. E dentro desse quadro o mimo é desconsiderado e, portanto, o que é propriamente humano some do horizonte. Tudo é feito com a ideia de que precisamos garantir a “sobrevivência básica”. Não se percebe que o homem não tem básico. Ele é o animal que vive pelo não básico porque, para ele, o básico é o mimo. O homem é homem no parque de diversões, no agrado, no exercício do orgulho, na fruição de sua imaginação. O homem gera o “mais” e vive do “mais” (o nome diz: “mais valia”). O populismo de direita e esquerda negam isso. O segundo quer que o homem more no Minha Casa Minha Vida (ou BNH) porque acredita que a rua também é moradia. O primeiro quer que o homem defenda a si mesmo, armado, porque acredita com isso estar ajudando-o a não perder sua “capacidade de empreendedor”. Em ambos os casos, não se precisa de democracia, de discussão ética, de pautas morais e, enfim, da conversa sobre a cidadania.

Mas o populismo está errado. A esquerda e a direita da Internacional Miserabilista, se olhasse o Brasil, veria que o economicismo é errado, e que a população quer outra coisa e decide voto por outras razões.

Em todo o processo eleitoral da redemocratização brasileira, de 1985 até agora, só uma vez importou para a população a discussão econômica. Foi na vitória de FHC sobre o PT, por ocasião do Plano Real. Em todas as outras eleições, a discussão econômica, a conversa da sobrevivência, não valeu nada para o eleitor, pois ele estava interessado em bater na corrupção, em melhorar a vida enquanto vida ética, em criar formas de voltar a se orgulhar de si e do país. Nunca o economicismo decidiu pleitos. Porque somos condenados ao mimo, somos seres da vida enquanto vida que só se entende vida com abundância e mimo. Agora, nesse momento, no Brasil de Bolsonaro, novamente é a questão da cidadania que conta – e a população diz bem isso quando, tendo votado no Bolsonaro, pede, com mais de 70% de aprovação, que as escolas discutam política (cidadania) e questões de gênero e sexo (Folha de S. Paulo, 07/01/2019). É o prazer que importa. É o extra-prazer que vale. O necessário do homem é o que é o mais necessário que o necessário.

Paulo Ghiraldelli Jr., 62, filósofo
http://ghiraldelli.pro.br/

Confira também: Subjetividade: narciso melancólico e narciso histérico

 

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Subjetividade: narciso melancólico e narciso histérico https://www.cloudcoaching.com.br/subjetividade-narciso-melancolico-e-narciso-histerico/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=subjetividade-narciso-melancolico-e-narciso-histerico https://www.cloudcoaching.com.br/subjetividade-narciso-melancolico-e-narciso-histerico/#respond_21286 Mon, 11 Nov 2019 14:20:39 +0000 https://www.cloudcoaching.com.br/?p=21286 O homem moderno é melancólico ou histérico? Ambos qualificativos já foram usados para descrever condições patológicas, viraram qualificativos de gente normal!

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Subjetividade: narciso melancólico e narciso histérico

O homem moderno é melancólico ou histérico? Ambos qualificativos já foram usados para descrever condições patológicas. Hoje, estão mais distantes dos consultórios. Sumiram? Há filósofos que dizem que estes termos desapareceram das salas de terapia à medida que se tornaram nomes para condições que se universalizaram. Viraram qualificativos de gente normal! Todos nós poderíamos ser chamados de uma coisa ou outra.

Os teóricos da Escola de Frankfurt referem-se ao homem moderno como melancólico. O filósofo Peter Sloterdijk o vê como histérico. Se recorremos às definições de Freud, tomando-as de forma genérica e sem muito rigor, podemos dizer que o melancólico é sombrio e ensimesmado, enquanto que o histérico faz escândalos e adora chamar a atenção para si através de comportamento teatral. Podemos confundir, ambos, com o narcisista. Mas, aí, todo cuidado é pouco. A distinção é visível.

Os frankfurtianos defendem a ideia de que a melancolia adveio da passagem do homem da condição de alguém com instintos livres para aquele que teve de conter e regrar impulsos. A melancolia vem da perda – sem luto – que teria havido para que o homem viesse a ser um transeunte racional. Peter Sloterdijk adota a tese de que o homem, no traçado de ser indivíduo, desenvolveu-se como aquele que se autoproduz (antropotécnicas) e, nesse afã, teatraliza-se. Os frankfurtianos olham para o homem moderno como aquele que calcula, mas não sente, por isso é um telespectador. Na verdade, nesse diapasão, o homem é propício a uma vida na “sociedade do espetáculo” (Debord).

Sloterdijk diz que o homem é o próprio espetáculo, e sua autoteatralização se encaixa muito bem na sociedade atual, completamente dominada pela mídia. É como se o homem de Adorno e Horkheimer (e Benjamin) estivesse sempre num canto, tendo sido treinado pela passividade estética diante da mercadoria pode adotar com facilidade uma atitude igual diante da proliferação de imagens da TV. É como se o homem de Sloterdijk, por sua vez, estivesse sempre se autorreinventando como quem tem diversas personalidades, todas avatares de jogos de Internet em dispositivos móveis.

Aqui, a tese do homem como corpo nu, de Agamben, ajuda um pouco: a coisa mais fácil é fazer alguém que é só corpo, portanto sem ética, dispor-se em avatares.

Em ambos os casos, há um certo autocentramento, que nos lembraria a tese do marxista Anselm Jappe (na trilha de Lasch), que diz que somos todos narcisos, uma vez que, acostumados à igualação das mercadorias por dinheiro,  entramos para um mundo tautológico. No mundo em que reina o equivalente universal, também nós teríamos abdicado de insistir em divergências fecundas, agindo sempre na igualação. O autocentramento do narcisista nada seria senão o preenchimento do horizonte por nós mesmos, dado nossa existência num mundo sem barreiras. Vacas se igualam a tomates pelo dinheiro. O mundo se tautologiza. E cada dinheiro se veste de dólar para atravessar fronteira e ficar igual ao outro. Nada há além do eu que não seja o eu. É o império da mesmidade.

Essa tese da mesmidade pode ser endossa pelo filósofo germano-coreano Byung Chul Han. Ele diz que vivemos a “sociedade do cansaço” porque nossa tarefa é a da autoexploração. No regime neoliberal somos todos pseudo-empresários de nós mesmos, pondo-nos em esforço máximo. A diversidade impera, mas não a singularidade. Existem os outros, mas nada que nos faça parar e pensar, pois não existe o antagônico, ou seja, o Outro. Há tribos urbanas de todo tipo e, para ficarmos com Lipovetsky, dizemos que o consumo é intimista, voltado para uma situação narcísica. As propagandas de creme Natura que o digam! Mas esse cultivo de si não tem dialética, não tem confronto. Os índios possuem vários outros índios, de outras tribos – são os outros. Mas eles ainda não viram o branco, portanto não conhecem o Outro. A inexistência do antagônico traz a solidão em meio aos muitos. A solidão de narciso.

O narciso em cada um não seria, também, em alguns momentos decisivos, ou o melancólico ensimesmado ou o histórico teatral?

Não vejo incompatibilidade, ao menos em termos bastante gerais, entre tomar o narcisismo como modelo do homem moderno e, ao mesmo tempo, notar que também somos melancólicos e histéricos.

No caso dos frankfurtianos e de Sloterdijk, há em suas argumentações um ponto comum que não é mera coincidência: todos eles analisam a história de Ulisses e as sereias para exemplificar os modelos adotados. Ambos traçam a pré-história (fantástica) da subjetividade por meio do episódio das Sereias, quando Ulisses volta da Guerra de Tróia para sua casa em Ítaca. Trata-se de uma das mais citadas passagens da Ilíada, de Homero.

Para os frankfurtianos, Ulissses enganou as Sereias ao se amarrar ao mastro e, então, contendo os impulsos, conseguiu ouvi-las cantar sem bater no penhasco com o se navio. Mas, ao fazer assim, ao traçar estratagemas, já se mostrou racional, um indivíduo burguês moderno, incapaz de realmente sentir e entrar em êxtase. Já era o homem a cumprir tudo formalmente, como de fato ocorre no mundo capitalista da mercadoria, onde as trocas são formais: a vaca pelo tomate por meio do dinheiro. Todavia, Benjamin notou o poema de Kafka, em que Ulisses não escuta as Sereias, e então finge que as escuta, criando um teatro para todos os seus companheiros de navio, que seguem remando com os ouvidos tampados. Isso pode nos conduzir à interpretação de Sloterdijk.

Ora, se é assim, se invocamos Kafka para notarmos o poema homérico, temos aí um prato cheio antes para Sloterdijk que para os próprios frankfurtianos.

Ulisses viu que não existiam Sereias, e que o canto vinha dele mesmo, da sua garganta. Nada mais nada menos que o som do canto de sua mãe, aquele canto do tempo em que esteve resguardado no útero. Qualquer volta para a casa seria acalentada por esse canto. Desse modo, a teatralização de Ulisses no mastro, seus olhos esbugalhados e seus gritos, tudo isso seria nada além do chamamento de atenção para si, próprio do homem moderno. É seu selo e diagnóstico: histérico.

Narcisista, sim – eis aí o homem moderno. Mas com nuances de melancolia e com espalhafatosidade histérica. Não encontramos esses três tipos predominando em nossa cultura atual? Não são essas as características centrais dos homens e mulheres modernos quando os vemos em sua normalidade? É difícil hoje nos afastarmos dessas teses.

Paulo Ghiraldelli Jr., 62, filósofo
http://ghiraldelli.pro.br/

Confira outros artigos na minha coluna: Uma mãozinha filosófica

 

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PTinder é o amor crivado pela política? https://www.cloudcoaching.com.br/ptinder-e-o-amor-crivado-pela-politica/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=ptinder-e-o-amor-crivado-pela-politica https://www.cloudcoaching.com.br/ptinder-e-o-amor-crivado-pela-politica/#respond_20573 Mon, 14 Oct 2019 14:20:36 +0000 http://www.cloudcoaching.com.br/?p=20573 PTinter é o amor crivado pela política. É algo como um Tinder, mas as pessoas devem ser de esquerda, ou melhor, petistas, para poderem participar.

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PTinter é o amor crivado pela política. É algo como um Tinder, mas as pessoas devem ser de esquerda, ou melhor, petistas, para poderem participar. Na Argentina surgiu algo igual, para peronistas. Antes, já havia aparecido coisa semelhante na Europa.

O que se passa? É realmente a politização do amor?

À primeira vista, somos levados a dizer que o amor não poderia ser crivado pela política. Ruim para a política, pior ainda para o amor. Nada substitui a experiência. O amor é a experiência central, a que pode nos transformar. Se a crivamos antes de ocorrer, perdemos chances de ampliar sentimentos e conhecimentos. Podemos estar optando por um empobrecimento. É isso? Criamos uma desgraça a mais?

Ora, se refletimos melhor, se lermos sobre o assunto de rede sociais de encontros, talvez tenhamos de mudar de opinião. Ou ao menos entender que a questão não é exclusivamente sobre política.

Os sites de relacionamento, tanto quando eram menos abruptamente ligados às aparências físicas quanto agora que, enfim, tudo é feito já de início com câmera ao vivo, provocam na maior parte das pessoas um sentimento de decepção. A pesquisas indicavam isso quando eles começaram a aparecer na Internet, e elas continuam do mesmo modo agora. Pode-se ter uma boa noção disso, ao menos quando o Skype e outros mecanismos parecidos não eram usados, pelo livro O amor nos tempos do capitalismo, de Eva Illouz. Pesquisas mais recentes não dão outra indicação. Quando entra a  dita vida real, ou seja, quando ocorre o encontro fora do campo virtual, a maior parte das pessoas envolvidas relata posteriormente que ganhou apenas decepção. No entanto, elas não falam em desistência. Elas não abandonam os sites, plataformas e aplicativos de relacionamento amoroso por conta disso.

Bem, se é assim, talvez o crivo pela política não seja algo atinente à politização do amor, mas apenas uma tentativa de criar uma cláusula a mais dentro dos questionários que devemos responder quando participamos de tais instrumentos. É como se as pessoas pudessem dizer: estou a fim de arriscar e ver se meu talvez futuro parceiro tem bafo, mas não estou a fim de ser surpreendida pela conversa de alguém que diz “mito” ao ver a família de milicianos do governo. Para ser sincero, nem sei o que decidir: bolsonarismo e bafo são ambos problemas reais para o amor.

Se uma moça tem bafo, como dizer isso? Se uma moça é bolsonarista, como encarar uma cerveja no bar com ela, supondo que ela não vai só beber, mas também emitir opiniões? O dono da Playboy dizia: é por isso que eu pago as mulheres e pronto! Sim, mas quem procura sites de relacionamento de tipo “namoro”, quer uma imitação de romance, dentro do que isso é possível, ainda, no capitalismo. O número de pessoas que quer parcerias sexuais fixas, namoros duradouros e casamentos, é ainda maior do que o tal sedutor sexo casual. Sim, também há estatísticas sobre isso. Os livros de Gilles Lipovetsky falam disso.

Talvez tenhamos que entender que o mundo virtual já não mais se distancia do real. Não se trata mais de mundo paralelo, como de início pensávamos quando falávamos da Internet. Para a geração que completa agora a sua maioridade, é ridículo e sem sentido falar de dois mundos. Internet e encontro real fazem parte da vida real. Tudo se dá no mesmo plano, sem as diferenciações da minha geração, que chegou a viver muito tempo sem Internet. Desse modo, se evitar bafo ainda não é possível, via Tinder, ao menos podemos evitar aquilo que é pior que o bafo, de ter de aguentar uma mulher que diz que a polícia não tem culpa nenhuma da morte de Ágatha.

Paulo Ghiraldelli, 62, filósofo.

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O eu dinâmico lambuzado em creme da Natura https://www.cloudcoaching.com.br/o-eu-dinamico-lambuzado-em-creme-da-natura/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-eu-dinamico-lambuzado-em-creme-da-natura https://www.cloudcoaching.com.br/o-eu-dinamico-lambuzado-em-creme-da-natura/#respond_19973 Mon, 16 Sep 2019 14:20:10 +0000 http://www.cloudcoaching.com.br/?p=19973 O culto do EU, de si mesmo, a disposição para projetá-lo sobre o horizonte e só enxergar aquilo que é o EU nosso, seja ele real ou mera criação imaginária.

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Hegel comemorou o feito de Descartes. Foi ele, Hegel, quem ensinou todos nós a marcarmos a modernidade, ao menos no campo filosófico, como tendo sido inaugurada pela ideia cartesiana de criação do eu absoluto. O Cogito ou o Eu que se pensa e, então, se ontologiza como “substância pensante” geraram o nosso tempo.

Todavia, também na mesma época, Pascal contestou Descartes: o eu seria apenas um conjunto de qualidades, não uma substância, muito menos, portanto, um absoluto. Depois, Hume também foi pelo mesmo caminho, delineando o eu como feixe de sensações e percepções. Essa tradição de crítica a Descartes chegou ao século XX pelas mãos de Nietzsche e virou moda com Benveniste. Foi ele quem deu ao eu condição exclusivamente linguística. O eu é como um “aqui” ou um “agora”; pronunciamos tais palavras que nos servem para indicar tempo e lugar em que estamos. O eu nos serve para podermos entrar na linguagem e ser um usuário da linguagem. Assim, usamos expressões que são referentes a nós mesmos: “Eu cheguei a São Paulo”. Dito por mim, significa uma pessoa chegando a São Paulo, exatamente aquela que pronunciou a frase, e não outra, ou seja, não você. Eu, Paulo, cheguei a São Paulo, e não o Pedro. Eu que uso a linguagem no momento sou quem chegou a São Paulo.

Mas, sendo substância ou mera peça linguística, ninguém nega a importância do eu na modernidade. Todos sabemos o quanto o eu predomina na vida moderna, uma época em que já se tornou normal falarmos de narcisismo: um culto do eu, um culto de si mesmo, uma disposição para projetar o eu sobre o horizonte e só enxergar aquilo que é o eu nosso, seja este eu real ou seja mera criação imaginária nossa, idealizada para mais (ou para menos – um narciso que admirasse sua feiura!).

No entanto, eis aí o problema de nossa época: somos narcisos em graus diversos e, ao mesmo tempo, temos sido bombardeados pela ideia de que estamos vivendo uma época de descentramento do eu, de vigência de múltiplos eus. Uma propaganda de TV que mostra bem essa situação vigente é a do comercial da Natura, agora de 2019 (veja aqui) “não me servem, mudo o tempo todo, como a minha pele”. Ou seja, sou aquilo que sou na internet: avatares e múltiplos eus. Sou na vida real isso, porque minha pele é, como disse Nietzsche certa vez em relação ao corpo, um conjunto de seres vivos. A propaganda leva ao pé da letra tal fisiologia, mas com base científica: a pele é de fato mutável e também um conjunto de micros organismos. Então, para que ela continue sendo plural e meu eu também, devo usar um tal creme da Natura. O texto termina assim: “vista sua pele e viva seu corpo”.

Nesse caso, o recado é narcísico, mas não na indicação de um eu centralizado e substancial. Um eu corporal, não mais o Cogito. Um eu deteriorável e, no entanto, cuidável pelo creme. Livros não mais servem, pois são para a mente. O corpo quer creme. E o corpo é plural. Ele dá a personalidade que, enfim, agora é cultivada por um narciso que se olha no espelho e se vê não mais unitário, mas em diversidade. Somos tantos rostos quanto microrganismos da pele que, como roupa, vestimos. Para viver temos de vestir a pele da multiplicidade. Ora, mas continuamos narcisos. Pois a propaganda mostra mulheres solitárias: ninguém curte o creme ou o visual delas, só elas mesmas. A propaganda é essencialmente contemporânea: lida só com desejos íntimos que são feitos para serem curtidos no espelho. É o fim da era da inveja para a entrada na era narcísica e intimista. Visto-me para mim! Tanto é que visto-me com minha própria pele. Minha experiência é com o creme, não com textos ou pessoas.

Esse narcisismo pode ser explicado por Peter Sloterdijk: falta-nos um parceiro que, enfim, abandonamos sem o devido cuidado ao nos desfazer da placenta. Pode ser notado por Agamben: se é o corpo o eu, então não temos ética. Não há ética para aquilo que é mera biologia e que pode ser trocada por um número e identificado por máquina. Podemos também lembrar de Byung Chul Han: é a falta do Outro que nos levou ao eu narcísico. Anselm Jappe, por sua vez, diz que este eu narcísico pode combinar bem com a ideia de pluralidade, de fragilidade, de diversidade. Aliás, ele acha mesmo que o narcisismo só combina com uma tal situação: a do capitalismo pós-fordista, pós-referência, ou seja, o neoliberalismo que é (des)regrador do capitalismo atual, aquele que o dinheiro não tem mais referência, não tem mais lastro, aquele em que as regras econômicas desapareceram. Nessa situação de volatização, nada melhor que um eu que imita o sistema de vida, um eu que narcisicamente não tem referência unitária, mas se multiplica em avatares não fixados em um espelho movente. Creio que poderia chamar de isso, por minha conta mesmo, de narcisismo dinâmico.

No mundo da não-regra, onde o valor, sendo abstrato, cria uma sociedade tautológica, tendemos a não ver mais nada de diferente, somente o Mesmo. Então, também o horizonte não apresenta nada de novo, somente nós mesmos. Melhor ainda se o horizonte apresenta vários eus que sou eu mesmo. Forja a impressão de diferente, sendo que se trata da mesma coisa mas com o que se apresenta plural (“rótulos não servem” – ensina a Natura). É como a moeda: cada uma com o seu uniforme nacional, mas são somente algo que não passa do igual, ou seja, dinheiro: o equivalente universal que tudo iguala. Moeda muda de nome e cada mulher que usa Natura pode mudar de pele – a própria pele é plural. Quando o dinheiro se olha no espelho ele se vê, na aparência, na forma de tipos de moeda, mas em essência, se enxerga como dólar, ou então não se vê; quando a mulher olha no espelho ela se vê múltipla se embalsamada em creme Natura, e aí sim, é mulher, ou simplesmente não se vê.

Paulo Ghiraldelli Jr, 62, filósofo

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Zumbis e Designers https://www.cloudcoaching.com.br/zumbis-e-designers/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=zumbis-e-designers https://www.cloudcoaching.com.br/zumbis-e-designers/#respond_19306 Mon, 19 Aug 2019 14:20:08 +0000 http://www.cloudcoaching.com.br/?p=19306 De um lado zumbis que ficam entre o que é coisa e o que é gente. Do outro, os supervivos sempre prontos para a reconstrução de si mesmos.

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Walking Dead é uma série de sucesso. Zumbis têm um pensamento confuso, andam cambaleando e ficam entre o que é coisa e o que é gente. Querem comer os vivos. Mas são lentos e é divertido abatê-los. Filmes da Marvel também fazem sucesso. Ali estão os que se apresentam como o oposto dos zumbis. Surgem os supervivos, sempre prontos para a reconstrução de si mesmos. São autodesigners. São autointensificadores.

O êxito desses gêneros deveria nos fazer pensar: o quanto identificamos nossas sociedades com tais situações, a ponto de nos sentirmos como que tomando conhecimento de alguma coisa ao ver tais películas. Entretenimento por entretenimento, poderíamos ficar com coisa melhor. Mas Walking Dead e Marvel possuem um certo encantamento, nos dão uma certa sensação de que estamos sendo informados sobre nós mesmos. Por quê?

O que se passa em Walking Dead está estudado por Karl Marx. O que é a norma nas séries da Marvel está descrito por Peter Sloterdijk. Foram eles que viram a modernidade como dividida entre os zumbis e os designers de si mesmos. Marx analisou tal coisa a partir da teoria do valor e da teoria do fetichismo da mercadoria. Sloterdijk analisou tal coisa a partir de uma peculiar teoria da subjetividade.

De modo brevíssimo, explico ambos.

Marx advogou a ideia de que o valor da mercadoria é o trabalho abstrato nela contido. Por isso, cada mercadoria sensível, concreta, é também prenhe do suprassensível, do que é social-humano. Nesse sentido, a mercadoria, coisa sensível, levanta sua cabeça diante dos humanos e cria vida, se comportando como um fetiche. Adquirindo essa função de sujeito, põe os humanos na condição de objetos. Os humanos, seus produtores, se veem à mercê das coisas, que adquirem vida e comando. O capitalismo é o reino do fetiche, e ao mesmo tempo o lar da reificação do homem. O campo de passeio dos zumbis. Somos todos zumbis na sociedade de mercado. Agimos como semi-coisas, uma vez que as coisas agem como vivos e prenhes de egoidade.

Sloterdijk advogou a ideia de que o homem moderno é aquele que fez da disposição de Sartre uma ideologia. A questão do homem moderno, como Sartre expôs, é a de se perguntar o que fazer com aquilo que dele foi feito. O homem moderno não se entende acabado, mas sempre em reconstrução, em uma eterna autoelaboração através de projetos educacionais, culturais e biogenéticos. O frenesi do homem moderno, em constante atividade, disposto a fazer da ação de guerra um jogo e do jogo um trabalho, mostra um desejo de ser tudo menos um zumbi, e sim um autodesigner dos melhores. Quando agimos como mutantes, no estilo de um Capitão América ou coisa parecida, estamos no nosso melhor. Nossa subjetividade autoconstruída, heroica e novidadeira está sempre pronta testar uma nova armadura de Tony Stark.

Assim, à primeira vista estamos cindidos. Ou há aí, talvez, duas teorias irreconciliáveis para descrever os nossos tempos?

Mas, se nos debruçamos mais atentamente para o que fazemos, podemos notar que, se dermos um passo para além dessas duas teorias, e pensarmos, ainda, com elas, veremos conciliação. O homem reificado, o zumbi que surge diante da mercadoria efetivamente e realmente fetichizada pelo valor, ainda é um semivivo. Deve se mover. Todavia, como se mover? Como se comportar? Ora, só há um modelo de ser vivo para este homem seguir e imitar: exatamente a mercadoria. Se ela pula da esteira da fábrica para o balcão, então ela ensina o homem a imitá-la. O homem reaprende a ser um ser movente se movendo como o que ensina a mercadoria, então transformada no que é vivo. O homem adquire semivida, imitando a mercadoria fetichizada.

Num mundo como o nosso, os robôs que se autorrefazem e os computadores que se autocorrigem aprenderam a atuar de maneira a parecerem mais vivos que qualquer outro ser vivo. Dão lição de performance. Se tornam autodesigners com capacidades heroicas. São exímios aproveitadores de feedbacks para si mesmos. São como o Capitão América que pode ser descongelado e funcionar normalmente, ou como as armaduras de Stark, que lhe dão a condição de aparecer como tipos diferentes de Homem de Ferro, em tempos diferentes.

Quando nos vemos assim, entendemos perfeitamente o quanto Walking Dead e a Marvel nos é familiar. São filmes que nos dão intrigantes espelhos.

Paulo Ghiraldelli Jr., 62, filósofo.

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O mundo em que vivo – como filósofo e cidadão https://www.cloudcoaching.com.br/o-mundo-em-que-vivo-como-filosofo-e-cidadao/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-mundo-em-que-vivo-como-filosofo-e-cidadao https://www.cloudcoaching.com.br/o-mundo-em-que-vivo-como-filosofo-e-cidadao/#respond_18818 Mon, 22 Jul 2019 14:30:01 +0000 http://www.cloudcoaching.com.br/o-mundo-em-que-vivo-como-filosofo-e-cidadao/ Nossas crianças estão sendo educadas, já corporalmente, para o imediatismo das imagens. O imediatismo, ou seja, o sem mediação, é antes de tudo o rápido. Acesso e entendimento precisam agora de velocidade.

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Minha neta Mariana ainda não sabe falar. Mas ela já sabe ver o “Monica Toy” no tablet. Ela toca a mão naquilo, no gesto de deslizar, e se delicia com as aventuras dos bonecos mauricianos. Há uma imediaticidade nisso: os sentidos da visão e da audição são acionados conjuntamente com o do tato. São três formas de imagens: tátil, visual e auditiva, não mais separadas, mas dadas em conjunto. Nossas crianças estão sendo educadas, já corporalmente, para o imediatismo das imagens. O imediatismo, ou seja, o sem mediação, é antes de tudo o rápido. Acesso e entendimento precisam, agora, de velocidade.

As pessoas aceleram meus vídeos. Não querem pensar. Se irritam se não recebem toda a informação de uma vez só, como quem recebe um tapa na cara, e não um beijo. São pessoas que já foram educadas pela minha neta. Que sabe beijar já, mas que estará propensa a estapear, aposto.

As imagens dominam a Terra, em três dimensões dos sentidos, que se dão conjuntamente, e que obrigam o pensamento a se modificar e, ele também, a se tornar peça do imagético. O pensamento, que era por definição uma mediação, agora se põe como arauto da degradação da imediaticidade. Desse modo, o pensamento não pensa. The Flash era um cara rápido. Agora, o flash é algo que se impõe ao pensamento, como se este só pudesse funcionar no seu não funcionamento, ou seja, no piscar de receber imagens. O mundo não faz sentido (Weber nos avisou), então, o sentido é dado pelas imagens disparatadas, dadas por um fluxo louco. Se podemos chamar isso de espetáculo, eis que agarramos tal situação para que, pelo nome, saibamos que alguma coisa está ocorrendo, que ainda estamos vivos e passando por alguma coisa, ou alguma coisa passando por nós.

Não foi a TV que nos preparou para isso, embora ela tenha ajudado. Não foi a Internet vinda pelo celular à mão que nos jogou nisso, embora tal coisa tenha fundado um novo reino para sermos súditos. O que nos preparou para tal foram, seguindo Heidegger e Debord, duas grandes viradas. Uma que foi a da “subjetivação do mundo”, estrelada pelo Humanismo, tendo Descartes à frente. Outra foi a do império da mercadoria, que forjou o mundo fetichizado, e que empurrou a subjetividade para outro plano. Marx foi o herói crítico dessa segunda fase.

Na amostragem de Heidegger, Descartes fez a verdade passar do desvelado para o certo (para a certeza), e fez o mundo apresentado, então, tornar-se representação – algo feito pelo homem. Tendo assim agido, colocou o mundo como algo do homem para o homem. Inaugurou uma época em que tudo é manipulado pelos olhos humanos, quando faz ciência, e pelas mãos, quando faz tecnologia, e pela guerra, quando quer testar tudo isso.

Na amostragem de Debord, Marx denunciou o advento da mercadoria como portadora de valor, ou seja, de hora de trabalho abstrato, algo que é o social humano embutido numa peça material. Sendo assim, a mercadoria, se tem utilidade, é algo que se impõe ao homem como tendo subjetividade, como o que aparece ao homem comandando sua ação, e transformando-o em objeto. Ela mostra ao homem seu modo de ser sensível e supra sensível ao mesmo tempo. Nisso, se põe como fantasma, como fetiche. Essa fetichização é seu espetáculo. A imagem fantástica disso nos embasbaca.

Assim, para Heidegger a modernidade é a época em que o mundo vira imagem, enquanto que para Debord a contemporaneidade é a época em que as imagens são já feitas em forma de espetáculo, de algo fantasmático. A imediaticidade da minha neta com as imagens, ou a daqueles que olham o vídeo do celular com pressa, ou, ainda, a dos que se deixam seduzir por tudo que é imagem tátil-sonora-visual imediata, como as simplórias imagens da campanha de Bolsonaro, revelam que a operação descrita por Heidegger e Debord foram eficientes. Primeiro, transformamos o mundo em imagem. Depois, transformamos o mundo das imagens em espetáculos. Primeiro, a ação humana de trazer tudo para o homem. Depois, a ação do capital de trazer tudo que é do homem e da terra para o fetiche. Vivemos sob o domínio disso. E criamos o Humanismo e o Capitalismo em comum acordo. Não à toa, eles nasceram praticamente juntos. Foram embalados por gôndolas de Veneza.

Esse projeto nos fez duplamente dominado: a dominação do homem pelo homem e a dominação do fetiche, do fantasma, sobre o homem. Dominação não em pensamento que passa, para nos dominar, pela cabeça, mas dominação que nos torna súdito por vivermos realmente numa situação de súditos. Súditos do homem pela técnica, súditos do homem pelo fantasma. Ninguém acha que pode ter o mundo, mas acha que pode ter representações dele. Daí a força do Facebook e do Youtube na produção de ontologia. Ninguém acha que pode escapar da mercadoria lhe dando ordens, como sujeito humano, daí a força das imagens de compra e venda das mercadorias que dominam nossa vontade, desejo, ação e, enfim, nossa subserviência ao valor, expresso numericamente em dinheiro.

Podemos nos libertar do humanismo e do capitalismo? Duvido que só a política faça isso. Todavia, enquanto cidadão, continuarei assinando petições por liberdade de imprensa, lutando pelo voto correto, cobrando meu deputado, condenando o genocídio e os ataques às minorias. Farei tudo isso como cidadão liberal americano, ou social democrata europeu. Mas, se eu fizer demais isso, matarei minha rebeldia e deixarei de tentar pensar em horizontes utópicos, livre da sociedade do espetáculo e seu humanismo? É um desafio ainda, mesmo para mim, aos 62 anos. Estou como quem começa agora.

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O fetichismo do dinheiro: todos só somos saudáveis se somos verdes https://www.cloudcoaching.com.br/o-fetichismo-do-dinheiro-todos-so-somos-saudaveis-se-somos-verdes/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-fetichismo-do-dinheiro-todos-so-somos-saudaveis-se-somos-verdes https://www.cloudcoaching.com.br/o-fetichismo-do-dinheiro-todos-so-somos-saudaveis-se-somos-verdes/#respond_18025 Mon, 24 Jun 2019 14:30:01 +0000 http://www.cloudcoaching.com.br/o-fetichismo-do-dinheiro-todos-so-somos-saudaveis-se-somos-verdes/ Entramos para o mundo no qual nossa subjetividade, se existe ainda, é tornada verde, como o dólar. Ou é verde, ou não tem cor alguma.

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Em A felicidade paradoxal, Gilles Lipovetsky acerta a mão ao descrever as fases do consumo moderno em correspondência às fases da produção industrial. É difícil discordar dele quando nos diz que vivemos um consumo que não é mais “para o outro” e sim “para si”. As pesquisas realmente mostram, hoje, um consumidor menos preocupado em provocar inveja e reiterar status social, ou criar distinções classistas, que um consumidor voltado para a curtição de experiências individuais e prazeres um tanto solitários e, digamos, pessoais.

Assim, hoje em dia seria mais fácil endossar teses sobre o narcisismo social, tendo no horizonte Christopher Lasch, que falar do consumo conspícuo, bem recortado na sociologia de Max Veblen. Todavia, estaríamos nós proibidos de voltar a Marx, e perguntarmos se sua análise do capitalismo – em especial as teses sobre o fetichismo – não seriam úteis aqui? É difícil calar o marxismo nessas circunstâncias.

O consumidor do passado, da fase da produção fordista e, enfim, também da fase pós-fordista de mercadorização de sentimentos e disposições, nada era senão aquele que aprendeu a guiar-se pelo fetiche da mercadoria. De fato, a mercadoria passou a funcionar como o vivo, e nós, os humanos, ficamos como os mortos diante dela. Ela adquiriu a condição de sujeito, e nós nos pusemos como objetos. Voltar à vida, então, nos fez imitar o fetiche, ou seja, a mercadoria. Mercadorizamo-nos para voltarmos a sermos gente! Imitamos os objetos para nos sentirmos sujeitos. Até pouco tempo, toda a crítica social se via na obrigação de denunciar nosso óbvio comportamento estereotipado, maquinal, feito objeto, ou então de meros zumbis. Mais recentemente, no entanto, o horizonte do fetiche da mercadoria tem ficado mais distante. O fetiche do dinheiro o substituiu.

A partir de Nixon, que em 1971 retirou o dólar de sua condição de atrelamento ao padrão ouro, o dinheiro americano – ícone e mandatário do dinheiro no mundo – se viu liberto para exibir toda a sua autorreferencialidade. O dinheiro, desde então, não mais significa algo a não ser ele mesmo, um número de conta. Isso favoreceu enormemente o capitalismo financeiro, que passou a se utilizar de uma moeda completamente fiduciária, gerada agora, em tempos de Internet, apenas pelo fluxo magnético, o ideal para tempos em que o que vale não é ciclo D-M-D’, e sim o ciclo D-D’, o do dinheiro que gera dinheiro. Esse tipo de capitalismo, chamado de “era do capital improdutivo” ou de vigência do “capitalismo de cassino”, fez vingar uma fetichização ainda maior. Agora, se o valor não dá mais base para o fetiche da mercadoria, ele alimenta o fetiche do próprio dinheiro. O vivo a que temos que imitar não é mais a mercadoria, e sim o próprio dinheiro. A autorreferencialidade do dinheiro é o que nos mostra o que é ser “gente”. Somos alguém se exercemos a autorreferencialidade. Somos alguém se somos imitadores do dinheiro. Ainda de nós se nos comportamos sem a virtualidade do dinheiro!

Se o dinheiro anda depressa, também nós devemos fazer o mesmo. Se o dinheiro é onipresente por ser dinheiro magnético, também nós desejamos ter uma vida como ele, única e exclusivamente virtual. Que sejamos avatares! Se o dinheiro participa do cassino da bolsa, também nós nos sentimos vivos se o dia todo estamos em algum jogo no celular. Se o dinheiro se reproduz sem trabalhar, também nós achamos que podemos fazer o curso de empreendedorismo para acordarmos no sonho que, agora, nem é mais o de sermos empresários, mas o de sermos “pequenos investidores”! Ou “médios investidores”! Temos de curtir nosso creme e nosso novo vestido diante do espelho. Temos de curtir o que comemos no Facebook, postando para nós mesmos nosso prato preferido em uma falsa rede social de amigos que não temos. Nossa vida prenhe de narcisismo espelha a autorreferencialidade do dinheiro atual, também ele um umbigo do mundo.

A cada dia, não mais nos relacionamos com o outro. O outro seria fruto de um mundo de um reino passado, o do fetiche da mercadoria. Afinal, mercadorias ainda possuem materialidade física e algum diferencial de aspecto. Ora, o dinheiro, diferentemente, não se diferencia a não ser por zeros a mais. A abstração máxima, agora, torna-se realidade da vida. A ideologia – que indica um mundo regido pela abstração fora da mente, nas relações sociais – se materializa em condições que atinge todos. Entramos para o mundo no qual nossa subjetividade, se existe ainda, é tornada verde, como o dólar. Ou é verde, ou não tem cor alguma. Ser verde-vômito indica, agora, ser saudável.

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Por que o Presidente da República é racista? https://www.cloudcoaching.com.br/por-que-o-presidente-da-republica-e-racista/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-o-presidente-da-republica-e-racista https://www.cloudcoaching.com.br/por-que-o-presidente-da-republica-e-racista/#respond_17772 Mon, 27 May 2019 06:00:01 +0000 http://www.cloudcoaching.com.br/por-que-o-presidente-da-republica-e-racista/ O preconceito só vai diminuir se o branco puder ver o negro, mais rapidamente do que temos conseguido fazer até agora, em cargos executivos, costumeiramente.

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Quando veio a Abolição da Escravatura, os negros caíram em festas e bebedeiras. Muitos foram levados para o centro do Rio de Janeiro, onde permaneceram completamente nus, bêbados, com as famílias destroçadas, urinando e defecando nas ruas da capital. Era o último ano do Império. Quando veio a República, eles já estavam morando em casebres, em lugares em que todo tipo de doença lhes pegava. Tentaram se empregar. Mas, mal vestidos, exalando cheiro de pinga barata – única forma de suportar a vida, e elemento que os viciou durante a escravidão – e descalços, eles não conseguiam ser ouvidos por nenhuma dona de casa. Ninguém mais os queriam como mão de obra. Os tais “imigrantes” estavam para chegar! Todos diziam.

Os imigrantes chegaram. Eram pobres. Mas estavam de terno e gravata. Não tinham o “cheiro de preto”. Pareciam que poderiam viver fora das senzalas, quase como humanos. Aos negros, nunca foi dada a condição de possíveis humanos. Então, o capitalismo brasileiro se integrou na narrativa do capitalismo internacional: trabalho assalariado para todos. Menos para os negros. Eles foram decretados, então, não os sem-trabalho, mas os vagabundos. Nasceu daí o preconceito. Ser negro passou a ser alguém que só poderia trabalhar a ferros; uma vez livre, entraria para a vida da bebida e da bandidagem. Diziam: “é de índole”. As negras, então, deixariam de lado a função de amas de leite pare enveredar pela prostituição barata, uma vez que a prostituição menos degradante era aquela não da sífilis, mas da simples gonorreia, transmitida pelas polacas.

Minha bisavó, aos 107 anos, gostava de me contar histórias da escravidão. Mas, aquelas que ela contava do negro livre, eram sempre as que mais revoltavam. Pois o negro livre parou de apanhar no pelourinho da praça para ser massacrado nas prisões das delegacias de todo o país. Ela lembra sempre da peregrinação do Negro José, um homem forte que por seis meses andou pela cidade de Nova Europa, no interior de São Paulo, tentando arrumar um terreno para carpir, sem sucesso. Foi então que ele, já à míngua, deitou-se na praça e foi preso por vagabundagem. Espancado na cadeia, José morreu de hemorragia interna. Durante a escravidão, durante mais de trinta anos, José havia sido o carregador de fezes da casa paroquial. Trazia para as fossas o cocô dos padres que, depois da escravidão, passaram a ir eles mesmos às fossas – “que degradante”, diziam, xingando a Imperatriz. Eles mesmos tinham de defecar, sem a ajuda dos pretos. Era horrível, diziam.

Os que negam hoje as cotas, e insistem em não criar uma política de integração étnica, para afastar o preconceito, são os agentes do cinismo. Procuram fingir que não sabem dessa história toda, de como o preconceito foi gerado, e insistem que no Brasil as cotas seriam um privilégio, uma odiosa marca no liberalismo, que garantiria a igualdade perante a lei. Ora bolas, alguém acha que negro é realmente igual perante a lei no Brasil? No Brasil, o próprio presidente da República, o tal de Bolsonaro, premia com honrarias seu guru que é visivelmente racista, que publica textos racistas. Como acreditar em liberais brasileiros?

Os liberais brasileiros deveriam pôr a mão na consciência e, também, nos melhores livros, ao virem com a conversa fiada da igualdade perante a lei. O preconceito só vai diminuir se o branco puder ver o negro, mais rapidamente do que temos conseguido fazer até agora, em cargos executivos, costumeiramente. As políticas de ações afirmativas são para isso, elas não são prêmios individuais ou políticas para dar diploma ou melhorar a renda do negro. Elas são políticas para baixar a bola do preconceito. Os liberais não querem entender isso por uma razão simples: Locke era um liberal escravocrata. Nosso neoliberalismo atual é escravocrata. Nosso liberalismo desconhece John Rawls ou John Dewey. Ele é o liberalismo de um Paulo Guedes, o liberalismo da escória intelectual do país.

Paulo Ghiraldelli Jr., 62, filósofo.

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Afinal de contas, o que é ofender o outro? https://www.cloudcoaching.com.br/afinal-de-contas-o-que-e-ofender-o-outro/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=afinal-de-contas-o-que-e-ofender-o-outro https://www.cloudcoaching.com.br/afinal-de-contas-o-que-e-ofender-o-outro/#respond_17109 Mon, 29 Apr 2019 06:00:01 +0000 http://www.cloudcoaching.com.br/afinal-de-contas-o-que-e-ofender-o-outro/ Ninguém mais sabe, com segurança, o que é uma ofensa.

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Os juízes e os promotores estão com uma batata quente nas mãos. Ninguém mais sabe, com segurança, o que é uma ofensa. Mas, em contrapartida, se é assim, eis o reino de melhores ganhos para os advogados. Tudo se presta a entrar como matéria de mais um processo indenizatório ou contra-indenizatório.

Como os profissionais do Direito, todos eles, perderam a capacidade filosófica – principalmente por conta das faculdades que se transformaram em meros lugares e cursos técnicos, inclusive para analfabetos -, então a população começou a procurar os filósofos para que estes possam lhes dizer o que é certo e o que é errado. Estamos em uma sociedade americanizada, em que a guerra de processos de todos contra todos se instaurou da cama ao governo. Então, muitos querem que nós, filósofos, tomados como “profissionais do saber ético”, sirvam como quem possa consultar Deus e dar um parecer mais seguro, quase definitivo, sobre o que vem a ser de fato um pecado que mereça ser exposto a um advogado, de modo a ferrar algum vizinho.

O problema nosso, então, como filósofos, é que não sabemos começar uma conversa sobre ética sem já de cara trazer decepção. Todo bom filósofo é, hoje, antes de tudo um scholar, um professor da filosofia ungido pela academia, e, desse modo, um quase relativista. Ou melhor: necessariamente um perspectivista. Somos obrigados a dizer aos que nos perguntam que há escolas de ética, na modernidade, que disputam terreno. Explicamos a ética do dever, de Kant, e logo falamos do consequencialismo, dos autores da tradição britânica e americana. Isso irrita os que nos procuram. Eles não querem aula, querem dizeres taxativos para saberem se procuram ou não um advogado. Querem saber sobre o “certo” e o “errado” de modo a ver se foram ofendidos ou se a ofensa que fizeram conta mesmo como ofensa.

Sou um perspectivista (eu acho!), e tendo a funcionar de modo oblíquo, causando decepções. Mas, às vezes, tento superar isso, e então busco elementos mais decisivos, no sentido de deixar nas mãos dos que me procuram algo mais abrangente. Tenho procurado dar instrumentos no sentido de munir as pessoas com saberes sobre como que, atualmente, definimos o “certo” e “errado”. O critério que tenho mostrado é tirado de um modo de entender a modernidade. Enxergo-a segundo Hegel ou Nietzsche, como uma época da revolução subjetivista. Temos subjetivado muita coisa, temos dado valor a uma tal subjetivação, especialmente porque consideramos a liberdade como elemento subjetivo. E não queremos abrir mão da liberdade – ainda que nesse caso estejamos mais com Hegel que com Nietzsche.

Sendo assim, todas as vezes que estivermos em uma contenda para saber se algo é uma ofensa ou não, o melhor modo de entendermos como que juízes avaliarão um caso, é notar que eles darão uma atenção, ao menos no Ocidente, aos fatores subjetivos. Entre a “liberdade de expressão” e a ofensa objetiva, a primeira pode levar uma grande vantagem. O exemplo mais significativo dos últimos tempos é o da avaliação de um juiz americano, que considerou uma mulher completamente inocente, e sem justificativa para ser multada e mesmo abordada, por fazer o gesto do dedo médio estendido a um policial (Folha de S. Paulo 20/03/2019). O juiz apelou para a célebre Primeira Emenda americana, que protege a liberdade de expressão. Considerou o gesto não como ofensa objetiva, mas como uma legítima demonstração de irritação subjetiva.

O gesto de mostrar o dedo médio existe na nossa cultura há muitos séculos. Está registrado na comédia de Aristófanes, As nuvens, encenada no ano de 423 a.C. É um gesto pornográfico que indica o falo, e por isso ofensivo. Todavia, não foi assim que o juiz entendeu. Ele alegou que se trata de algo costumeiro, um gesto incorporado no Ocidente, e que perdeu sua conotação de ofensa objetiva e passou a ser algo do âmbito da expressão humana, uma expressão que não pode ser cerceada, que é a de dizer que se está insatisfeito. Eis o que o gesto, para o juiz: estou insatisfeito com a autoridade (policial) e, por isso, eu faço meu gesto com o dedo médio apontado. Não estou necessariamente querendo que a autoridade vá se danar, sirva ao coito e se torna coitado etc. Estou apenas dizendo: “não gostei”. É totalmente lícito, na democracia liberal, dizer “não gostei”. Se não podemos expressar nossa subjetividade descontente com um “não gostei” gestual, a democracia perde seu sentido. Ora, chegamos nisso, nesse tipo de avaliação desse gesto, por conta da modernidade ser a época da subjetivização.

Agamben considera a liberdade como aderente ao gesto que não tem finalidade. O puro gesto. A dança é o gesto sem finalidade. Por isso é expressão da liberdade. Mas, segundo os juízes de nossos tempos, o gesto com finalidade, que é dizer “não gostei”, é uma expressão sim de liberdade. Sabemos que a subjetividade contemporânea passa por problemas diante do conceito clássico moderno de subjetividade, mas, no caso avaliado pelo juiz americano, o que ficou valendo é que a multa sobre o gesto avaliado feriu algo do âmbito subjetivo em geral, algo que tem a ver com a liberdade íntima de se ficar aborrecido.

Creio que se observamos isso, a ideia de subjetivação do mundo como o que rege a modernidade, tenderemos a saber para onde juízes irão olhar, tendencialmente, ao menos no Ocidente. Talvez isso ajude os que nos procuram para saber o que é “certo” e “errado”

Paulo Ghiraldelli Jr. 62, filósofo

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Massacre de Suzano: a seita dos Chans e o mundo das imagens https://www.cloudcoaching.com.br/massacre-de-suzano-a-seita-dos-chans-e-o-mundo-das-imagens/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=massacre-de-suzano-a-seita-dos-chans-e-o-mundo-das-imagens https://www.cloudcoaching.com.br/massacre-de-suzano-a-seita-dos-chans-e-o-mundo-das-imagens/#respond_16191 Mon, 01 Apr 2019 06:00:01 +0000 http://www.cloudcoaching.com.br/massacre-de-suzano-a-seita-dos-chans-e-o-mundo-das-imagens/ A maior parte dos artigos vindos dessa área desconsidera o estudo histórico de grupos desse tipo e, pior ainda, não dão atenção para a própria estrutura dos fóruns, que são como que seitas organizadas.

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Não há dúvida que os assassinos do massacre da escola Raul Brasil, em Suzano, passaram pelo fórum virtual dos Chans. Trata-se de um grupo de anônimos na Internet que cultiva as armas, o “fazer justiça” e, enfim, a morte. Há vários desses grupos pelo mundo virtual, em todo tipo de língua. Os estudos sobre esses grupos, infelizmente, é levado adiante, no mundo todo, principalmente por psicólogos. A tendência dos psicólogos, no caso, é a de reduzir a visão a questões de bullying, baixa estima, narcisismo, predisposições suicidas, descaso dos pais etc. A maior parte dos artigos vindos dessa área desconsidera o estudo histórico de grupos desse tipo e, pior ainda, não dão atenção para a própria estrutura dos fóruns, que são como que seitas organizadas.

Ações de ataques seguidas de suicídio são bem diferentes de suicídio solitários, de pessoas depressivas etc. Ações de ataques são feitas com objetivos grandiosos.

Em geral, o que se busca no mundo antigo, com tais ações, é a glória. Não é necessário, no caso, qualquer visão substancialmente transcendente. Basta que o nome seja inserido no panteão dos deuses. Mas não como uma homenagem individual que, afinal, não poderia ser observada pelo autor, pois este já está morto quando o respeito da comunidade vier a cair sobre ele. Trata-se, no caso, de não desobedecer aos deuses, cumprir seu destino, não deixar que se impere o caos. O cosmos precisa ser mantido. Ou seja, a harmonia tem de prevalecer. Quem nasceu para herói, então, que seja herói. Foi por isso que Aquiles voltou à Guerra de Troia, para cumprir seu destino. Não honrar a morte de seu companheiro, matando o adversário, seria tirar a Terra do seu eixo, seria fazer o Cosmos virar o Caos.

Mas como ocorre a glória, ou o que restou dela, no mundo moderno?

A visão moderna apela para a transcendência: Cristo se oferecendo na Cruz, os kamikases se jogando contra navios aliados e ganhando uma atenção do Imperador divino, os terroristas do mundo árabe atual se colocando a caminho das mil virgens, e por aí vai. Mas o que resta da glória, na comunidade dos Chans, nada tem de apelo ao transcendente. Nem se trata de uma volta à glória antiga. Não se quer passagem para o Céu ou outra vida, nem se quer entrar para o panteão dos heróis cultivados na memória dos que ficaram. É aqui que os estudiosos erram. Imaginam que com o movimento No Notoriety (sem notoriedade), eles podem barrar as ações dos Chans. Basta não publicar nada sobre eles, e então eles perderiam a motivação. Não é isso. Não se consegue barrá-los por meio dessa atitude. Pois os Chans não querem notoriedade pela imprensa comum, e nada querem a posteriori. Eles obtém a reverência necessária no exato momento apoteótico da ação. E isso, de maneira real. Pela profusão na Internet e perante outros Chans, das imagens de sua ação. Trata-se de espetáculo. Minutos antes do final da ação, na hora do suicídio, eles ainda olham a comunidade que já os glorifica, gritam por eles, transmitem as fotos em tempo real e os cultiva. Tudo é questão de minutos. Mas vale a pena. Pois a endorfina obtida ali é maior que um gol marcado, uma droga, um êxtase religioso ou um êxtase sexual. É na verdade um êxtase e um ecstasi (no sentido heideggeriano), ou seja, um gozo e também uma confluência do tempo, um acontecer que funde passado, presente e futuro num só ato. Isso é essencial para a glória moderna, que é glória individual. Mas, nesse caso, uma glória realmente vivida, sem apelo transcendental. Isso singulariza dos Chans e grupos similares.

Nada que se faça para barrar o aparecimento do feitos desses jovens na imprensa regular, mudará as coisas. A ideia dos Chans é a obtenção da supremacia. Portanto, prova-se para si mesmo que se é melhor que outros, tidos como melhores, exatamente pelo ato de matá-los, “fazer justiça”, e ultrapassar a morte pelo suicídio – os outros, os mortos ou feridos, correram, fugiram, foram covardes. O atirador se mata, em comunhão com sua arma, sua adoração. Morre completamente feliz. Não fugiu. Em um momento único, foi ungido rei. E sempre o será, pois a comunidade, nos minutos antes de sua morte, presencia todas as imagens e sabe que está diante de alguém que não voltou atrás. Que se impôs. Aliás, quando alguém está disposto a dar esse passo, começa a postar fotos referentes ao que vai fazer, denuncia o assunto, deixa claro para todos que algo grande vai ocorrer, que devem ficar atentos, pois a missão de bravura e supremacia está para acontecer. E acontece.

Todos os meus estudos sobre essas comunidades, de uns três anos para cá, me deram condição de ver essa regularidade de comportamento, e a regularidade da cerimônia instantânea de cultivo à gloria. Quando Bolsonaro cria, a partir do poder, o cultivo às armas, e quando a Taurus vê seu lucro crescer, essas comunidades ficam visivelmente excitadas. Jamais faltou nessas comunidades frase de regozijo com a morte da Marielle. Não por Marielle, mas pelo modo como ela morreu. Os tiros, a ação, a aventura – tudo isso encanta esses jovens. Mas os assassinos de Marielle não foram comemorados. Não se mataram. Não foram dignos. Isso, para os Chans, ficou bem claro. A família Bolsonaro é vista com bons olhos por eles, mas por estarem vivos, ainda são de segunda categoria, são covardes.

Paulo Ghiraldelli Jr., 62, filósofo.

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