
Liberdade, Individualidade e os Limites dos Algoritmos
Sem o coletivo, a humanidade teria chegado até aqui? Tudo indica que não, já que nossa única arma, em um mundo de predadores, era o cérebro, e as soluções de sobrevivência que ele encontrou, passava pelas organizações coletivas.
Desde os primeiros núcleos tribais, dependemos da cooperação para caça, cultivo e defesa. Foi o espírito coletivo que levou ao surgimento das primeiras cidades, impérios e civilizações, e permitiu a construção de instituições, línguas, culturas e tecnologias.
As grandes conquistas sociais da história — como o fim da escravidão, os direitos trabalhistas, a saúde pública, a educação gratuita e a democracia — só foram possíveis graças à ação coletiva. São frutos de movimentos sociais, sindicatos, frentes políticas, alianças intercomunitárias e esforços de construção de um bem comum.
O sistema de vacinação, por exemplo, não depende apenas da decisão individual de se proteger, mas da responsabilidade coletiva de garantir imunidade a toda a sociedade. E sempre foi assim, até que o movimento antivacina entrasse em campo. Mas essa é outra história, uma que passa pelo individualismo mais básico.
Mesmo na ciência, o progresso não se dá em isolamento: laboratórios colaboram, pesquisadores compartilham dados, revistas científicas existem para fomentar o intercâmbio de ideias. Ou seja, a lógica do coletivo, que pode ser resumida naquela citação de “enxergar mais longe por estar sobre os ombros de gigantes”, sempre esteve presente.
Mas claro que o individualismo sempre foi um traço forte na nossa história, também ligado a um instinto primitivo de sobrevivência. E as sociedades passaram a absorver estas características, onde umas são mais centradas no coletivo e outras no individualismo.
Essa diferença cultural tem um impacto grande na forma como lidamos com vários temas, e um deles é a liberdade de expressão. Nos Estados Unidos, a Primeira Emenda da Constituição garante esse direito de maneira ampla, cobrindo até mesmo discursos considerados ofensivos, desde que não incitem violência direta.
Por isso, lá você pode encontrar organizações nazistas, que usam símbolos como a suástica e reverenciam Hitler livremente.
No Brasil, a Constituição também assegura a liberdade de expressão, mas dentro de certos limites legais, como a preservação da honra, da imagem e da dignidade da pessoa. Aqui, a formação de um partido nazista, com utilização de sua simbologia, é proibida, o que já causou problemas para um apresentador de podcast, que achou inteligente defender o contrário.
É nesse cruzamento entre liberdade individual e responsabilidade coletiva que está o debate sobre a regulamentação das redes sociais, com argumentos dos dois lados da disputa.
Mas vamos ver um caso concreto: a atriz Paolla Oliveira, viu sua imagem ser usada sem sua autorização, em uma página do Facebook, para anunciar sites de apostas. Mesmo depois de tentar derrubar a página, o dono do perfil recorreu, alegando liberdade de expressão — e, surpreendentemente, o Facebook decidiu manter o conteúdo.
Muitos veem qualquer tentativa de criar regras para o ambiente digital como censura. No entanto, essa percepção ignora um fato básico: a vida fora da internet já é — e sempre foi — amplamente regulamentada.
Existem leis escritas, como o Código Penal e o Código Civil, assim como normas sociais não escritas, como regras de convivência, respeito e etiqueta. Não podemos invadir a casa de alguém, colar cartazes com fotos de uma pessoa sem consentimento, espalhar boatos ou usar a imagem alheia para vender produtos. Tudo isso, no mundo físico, é regulado por leis e sanções.
E aí, vem o paradoxo: justamente no espaço onde passamos cada vez mais tempo — o mundo digital —, muitos defendem que não deve haver limites, como se a internet fosse uma zona livre de regras, a terra de ninguém que sempre se fala. Essa ausência de regulação só favorece o crime e prejudica suas vítimas, enfraquecendo qualquer senso de justiça. O ambiente online precisa ser tão ético e protegido quanto o offline — não o contrário.
A questão é que a discussão aí passa pela liberdade individual, defendida como se fosse uma religião, enquanto que outros priorizam a coletividade, a harmonia social e o bem comum.
Segundo o psicólogo social Geert Hofstede, a relação entre individualismo e coletivismo é um dos eixos centrais que definem como sociedades funcionam. Para ele, os Estados Unidos são o país mais individualista entre os pesquisados: lá, a autonomia pessoal, a liberdade de expressão e o direito à propriedade são pilares quase sagrados. Por isso, dá para defender até o nazismo.
Aqui no Brasil, apesar de todos os nossos traços individualistas, especialmente entre as elites, temos um índice mais moderado — com um peso maior para as redes de apoio, a comunidade, a família, o grupo. Um exemplo básico é o nosso sistema de saúde, que é gratuito. Já o sistema americano pode falir uma família, se ela estiver fora da área de cobertura, que o atual presidente de lá tenta diminuir ainda mais.
Nos Estados Unidos, casos como o da Paolla Oliveira podem ser tolerados por mais tempo, em nome de um princípio que defende a liberdade. Já no Brasil, a sensibilidade pública tende a exigir uma responsabilização mais clara, ainda que as plataformas resistam.
Não por acaso, o debate sobre a regulação das big techs vem ganhando força no Congresso Nacional — enfrentando, claro, a reação de quem vê qualquer tentativa de controle como censura.
Mas é preciso fazer a pergunta incômoda: liberdade de quem? A de uma mulher, famosa ou não, que tem sua imagem explorada sem consentimento? Ou a de uma página anônima, que lucra com a mentira e se esconde sob o manto da “livre expressão”?
A resposta, talvez, dependa de onde estamos olhando — e de quais valores foram inscritos em nossa formação cultural. A história mostra que, sem o coletivo, nenhuma liberdade é sustentável — porque a liberdade, sozinha, não constrói pontes, não cura doenças, não organiza cidades, nem garante justiça.
Gostou do artigo?
Quer entender melhor até que ponto a liberdade individual de expressão deve ser limitada para proteger o bem coletivo nas redes sociais? Entre em contato comigo. Terei o maior prazer em responder.
Marco Ornellas
https://www.ornellas.com.br/
Confira também: O Etarismo no Mercado de Trabalho: A Nova Balada de Narayama
Participe da Conversa