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Minha querida, o Dr. Bumbum ainda pode pegar você!

Ninguém está realmente livre de ser devorado por aqueles que estão por aí prontos para abrir uma cova para os aparentemente vaidosos.

Pegaram e trancafiaram o falso médico. Ele nem mais estava autorizado a clinicar. Mas o Dr. Bumbum clinicava em casa! Fazia plásticas em seu próprio apartamento, e as coisas nem sempre saíam a contento. Até que veio a morte da bancária.

Há quem se ache livre do Dr. Bumbum, que agora está preso. Mas ninguém está realmente livre de ser devorado por aqueles que estão por aí prontos para abrir uma cova para os aparentemente vaidosos. Sim, digo aparente, pois não se trata de vaidade. Não se trata do movimento que, no passado, fazia as pessoas desejarem comprar uma roupa ou um carro para se exibir. O Dr. Bumbum promete que você vai finalmente ser feliz por conta de poder ficar dentro de um modelito perfeito. Ele promete a auto-curtição. Finalmente você e seu bumbum estarão em harmonia – no cemitério.

Que pessoas estejam morrendo ao se colocarem nas mãos de todo tipo de médico que faz intervenção cirúrgica em favor de plástica, isso nós já sabemos. As estatísticas desse casos só tem feito aumentar – exponencialmente, nos últimos dez anos. Mas o que em geral não é investigado são as razões profundas que levam uma tal coisa a ocorrer.

A explicação superficial diz que é a falta de informação, o baixo preço prometido pelas operações, o excesso de vaidade e, até mesmo, algum distúrbio de personalidade – afinal, nunca se viu tanta gente “bombada” ou querendo ter um corpo eternamente jovem, com características tiradas de silhuetas de histórias em quadrinhos postas agora no cinema. Uma explicação assim dividiria o mundo entre aqueles que podem cair nas mãos de tipos como o Dr. Bumbum e aqueles que jamais seriam pegas por ele. Mas isso não existe. Não há quem esteja imune aos toques de flauta de encanto do cirurgião.

É que a cultura de época é mais eficaz do que imaginamos. E estamos numa cultura de época que tem posto o individualismo em uma nova fase, como ideal de vida. Nesse diapasão, a festa em favor da autonomia continua. Todavia, essa autonomia, agora, não diz respeito mais a uma liberdade ética, mas à escolha de uma moral que instituiu a ideia de reconstrução de si mesmo enquanto reconstrução corporal.

No início da idade moderna, ser um indivíduo autônomo tornou-se a regra. Mas, na modernidade atual, a contemporaneidade, esse indivíduo se sente autônomo se pode não mais descobrir coisas, mas inventá-las, inclusive inventar seu próprio eu, que agora é seu corpo, não mais seu pensamento. Vivemos uma época em que ser autônomo, ser um indivíduo livre, não é assumir ideias e propor teses, mas passar por experiências de intensificação – Peter Sloterdijk vem dizendo isso já há algum tempo. É a época da “viagem”, tanto a turística quanto a das drogas. O eu intensificado pela experiência é o eu que pode, a qualquer momento, se refazer. Refazer o corpo – colocar todo tipo de prótese capaz de deixar Stan Lee e seus X Men achando que eles até que são normais. Fazer uso de todo tipo de química ou engenharia para poder se sentir bem consigo mesmo, desde que o si mesmo seja o aparato locomotor com cabelos.

Esse movimento da modernidade, que já tem 500 anos, na sua fase mais radical já tem algo em torno de meio século. Primeiro veio “ser livre é usar uma calça jeans azul e desbotada”. Depois, a tatuagem generalizada foi seu primeiro sinal mais significativo. Por fim, veio o sinal da reificação total, da coisificação expandida: a pessoa entra numa loja e vê uma calça que, enfim, se torna sujeito e faz da pessoa o objeto. Pois a calça só concorda em ir para a casa com o comprador se ele, comprador, ao invés de recosturar a calça, para que ela sirva, ele venha a recosturar a si mesmo, para que a calça o utilize. Primeiro ele vai para o regime, depois para a academia e, enfim, para a cirurgia. A calça de objeto passa a ser sujeito. O sujeito comprador se imagina indivíduo autônomo, enfim, sujeito, mas ele se comporta como objeto. De tanto querer ser o indivíduo autônomo, ele se transforma no objeto que segue as determinações da mercadoria. Ele se mantém sujeito em um segundo sentido: aquele que se sujeita. Tudo isso foi explicada em O capital, de Karl Marx, no capítulo sobre “O fetiche da mercadoria”.

Esse movimento não tem parada. Ele é inerente ao individualismo moderno associado à expansão inaudita da sociedade de mercado que se transforma em sociedade de consumo, e ao ideal de que o melhor consumo é o consumo de si mesmo. Eis a regra: eu me consumo, sem precisar de ninguém. Eu me curto ao me refazer, ao me reconstruir, ao me intensificar. E só o Dr. Bumbum compreende minha necessidade! Portanto, por mais aviso que eu tenha sobre tudo, a época é mais forte que eu e me entrega nas mãos do Dr. Bumbum. Eu o amo. Só ele me proporciona a viagem.

Paulo Ghiraldelli Jr., 60, filósofo.

Paulo Ghiraldelli Jr é filósofo, professor e escritor. Tem doutorado em filosofia pela USP e doutorado em filosofia da educação pela PUC-SP. Tem mestrado em filosofia pela USP e mestrado em filosofia e história da educação pela PUC-SP. Tirou sua livre-docência pela UNESP, tornando-se professor titular. Fez pós-doutorado no setor de medicina social da UERJ, como tema “Corpo – Filosofia e Educação”. É bacharel em filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (S. Paulo) e é licenciado em Educação Física pela Escola Superior de Ed. Física de S. Carlos, hoje incorporada pela Universidade Federal de S. Carlos (UFSCar). Foi pesquisador nos Estados Unidos e na Nova Zelândia. É editor internacional e participante de publicações relevantes no Brasil e no exterior. Possui mais de 40 livros em filosofia e educação. Trabalhou junto da produtora de TV e filósofa Francielle Maria Chies no programa Hora da Coruja da FLIX TV. É professor de filosofia aposentado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Trabalha atualmente como diretor e pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA).
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